Herança artesanal: as histórias de quem ganha a vida com cerâmica

Maragogipinho, no Recôncavo Baiano, tem cerca de 150 olarias

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  • Raquel Brito

Publicado em 17 de novembro de 2023 às 06:00

Prática do artesanato é passada de geração em geração
Prática do artesanato é passada de geração em geração Crédito: Emerson Ishikawa

Maria da Hora conhece a cerâmica desde que se entende por gente. Hoje com 93 anos, a artesã se lembra dos dias em que acompanhava os pais nas olarias para auxiliá-los no trabalho: a mãe, já fraca, não aguentava o peso do trabalho sozinha. Levava os nove filhos, então, para ajudar na produção de louças.

“A gente carregava um balaio, que coloca no forno para embarcar e vender. Era assim. Eu tomei gosto e estou até hoje”, conta. A tradição passa de geração em geração. Se foi com a mãe que Maria aprendeu a gostar do artesanato, hoje suas filhas e netas continuam o costume, com uma loja de cerâmica em Maragogipinho, distrito de Aratuípe, no recôncavo baiano.

Dona Maria e uma de suas peças
Dona Maria e uma de suas peças Crédito: Acervo pessoal

A história de Maria da Hora se repete em regiões como Maragogipinho, um dos pólos da cerâmica na Bahia, que conta com cerca de 150 olarias na pequena comarca de aproximadamente 4,5 mil habitantes. Atividade tradicional, o artesanato é como uma herança para muitas famílias da região.

No distrito de Maragogipinho, a cerâmica e a pesca são as principais atividades econômicas. De acordo com a prefeitura de Aratuípe, 90% da população de Maragogipinho tem a cerâmica como fonte de renda, sendo 70% diretamente e 20% indiretamente – com serviços como transporte do barro e o corte da lenha que alimenta os fornos.

A prática movimenta mensalmente cerca de R$260 mil na economia e turismo da região, entre aquisição de matéria prima, mão-de-obra na operacionalização nas olarias, venda do produto final, hospedagem e gastronomia.

Em 2004, o distrito recebeu menção honrosa no Prêmio Unesco de Artesanato para a América Latina e Caribe, como o maior centro de cerâmica da América Latina. Em 2021, passou a ter a Feira de Artesanato da Bahia para celebrar a principal fonte de renda do local, que é considerado um polo da cerâmica artesanal.

Nos anos anteriores, a Feira do Artesanato movimentou mais de R$80 mil, de acordo com a prefeitura de Aratuípe. Com cerca de 12 mil visitantes nesses dois anos, a expectativa do município é de que o número seja ainda maior para o Festival da Cerâmica.

Rosene dos Santos, artesã de 48 anos, também começou cedo o contato com a cerâmica. Filha de artesã, fez suas primeiras figuras de barro aos cinco anos, acompanhando a mãe em seu ofício. Aos oito, já produzia todas as suas obras.

“Para mim é muito prazeroso poder produzir minhas próprias peças e determinar o valor que quero ganhar com a minha produção. Durante toda a minha vida a cerâmica foi prioridade, tudo que eu construí foi do barro”, diz.

Atualmente, ela também comercializa suas obras em Maragogipinho, onde faz todas as etapas da produção. Segundo a artesã, a criatividade vem de forma natural, assim que se senta no banco. “Todo o processo é feito por mim mesma. Eu amasso o barro, produzo as peças, preparo, queimo e quando preciso, pinto também”, relata.

Rosalvo Santana, de 59 anos, não foi um dos afortunados pelo legado. Fascinado desde criança pelos formatos das figuras de santos que via em procissões, o artista não conseguia entender como aquelas obras eram feitas por mãos humanas. Para se certificar de que eram, sim, feitas por alguém de carne e osso, foi praticar por conta própria: aos cinco anos de idade, começava a fazer bichos de barro. Muitos leões e cavalinhos depois, encontrou o que realmente o interessava.

“As pessoas notaram que eu tinha facilidade para fazer anatomia e me disseram que eu conseguiria fazer santos se tentasse. Quando me disseram isso, faltavam três meses para a Feira de Caxixis, em Nazaré das Farinhas, e eu fiz a Nossa Senhora da Conceição no estilo barroco. As pessoas ficaram atônitas, porque ninguém fazia santos de cerâmica. Os moradores desciam para ver”, diz o artesão, que, à época, tinha 18 anos.

Rosalvo começou a praticar cerâmica aos cinco anos
Rosalvo começou a praticar cerâmica aos cinco anos Crédito: Acervo pessoal

Esse foi o ponto inicial. Depois disso, levou sua arte para Salvador e muitas outras cidades, recebendo o primeiro prêmio em 1998 por um presépio de cerâmica no seu próprio estilo, que mistura o barroco e o rococó. Hoje, tem o título de mestre, aceita encomendas de todo o Brasil e dá início à tradição na sua família: Rosalvinho, como chama o filho mais velho, de 22 anos, já disse que quer seguir os passos do pai.

“Ele me disse que queria aprender. Eu nunca forcei meus filhos a seguirem esse caminho, eu deixo eles observarem. Eu tenho uma filha que também desenha muito e tem aptidão para modelagem. Eu acredito que também deve ter algo da genética nisso”, conta, aos risos.

Ouro do recôncavo

As regiões do recôncavo e baixo-sul da Bahia eram conhecidas no Brasil Colônia como áreas que forneciam alimentos para a capital, como farinha e hortaliças. Foi ali, na produção de vasos para refinar o açúcar – os chamados pães de açúcar –, que a prática da cerâmica, já realizada também por populações indígenas, cresceu. Quem explica é Rodrigo Lyra, designer especialista na pesquisa de manifestações do artesanato tradicional e consultor da organização Fábrica Cultural.

“Essa é uma técnica portuguesa, em que se tem a presença do homem manejando, através do pedal, um torno. É diferente da tradição do interior do estado, normalmente de origem indígena, que é produzida por mulheres apenas com o auxílio das mãos, pela técnica do acordelado”, diz.

Entre junho e dezembro de 2022, o Governo do Estado, através do Programa do Artesanato da Bahia, realizou um censo de olarias em Maragogipinho, com a participação de cerca de cem famílias oleiras. Em 54% dos casos, pelo menos uma pessoa da família possui cadastro no Sistema de Informações Cadastrais do Artesanato Brasileiro (Sicab).

A pesquisa mostrou também que 97% dos artesãos do barro apostam no turismo ao produzir e comercializar seus produtos. Dentre os principais segmentos desse mercado, a decoração lidera, estando presente na produção de 84% das olarias. Itens voltados para jardinagem e gastronomia dividem o segundo lugar, em 60% das respostas.

Hoje, a cerâmica atrai grupos de turismo que enchem ônibus para conhecer Maragogipinho e sua arte, e é vendida para clientes que vão de excursionistas a grandes redes de hoteis. De acordo com Lúcia Aquino de Queiroz, pesquisadora e membro do Observatório de Economia Criativa da Bahia (OBEC) e professora na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), a relevância da atividade vai além dos limites do distrito.

“Na realidade, o que leva os turistas não só ao distrito, mas ao município de Aratuípe, é a existência da cerâmica de Maragogipinho. Um artesanato que tem grande importância para o mundo inteiro, um lugar premiado como o maior centro de ceramistas da América Latina em 2004. Isso, de fato, leva Maragogipinho a esse destaque”, afirma.

O reconhecimento do artesanato, fomentado por feiras como a de Caxixis, realizada em Nazaré das Farinhas, é essencial para a manutenção da tradição. No entanto, Queiroz reitera que, mais do que atividades pontuais, uma parte ainda mais importante são as ações de salvaguarda.

“É preciso que esse bem cultural seja registrado como um patrimônio e que sejam direcionadas ações de salvaguarda, que possibilitem efetivamente que os oleiros tenham condições de continuar produzindo, de incrementar sua produção com maior fluxo de visitantes e de compradores, e que isso atraia os jovens na perpetuação dessa arte”, defende.

*Com orientação da subchefe de reportagem Monique Lôbo.