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Fernanda Santana
Publicado em 25 de fevereiro de 2024 às 16:00
O túnel Américo Simas, no Comércio, não é o que se pode chamar de ponto turístico. Por isso, quando dois policiais avistaram um casal de japoneses, com mochila nas costas e aparência de 70+, caminhando pela pista, sabiam que tinha coisa ali.
O idoso estrangeiro andava na calçada da pista que dá acesso ao túnel, com um mapa nas mãos, enquanto a mulher ia pelo canteiro direito da pista. Na paisagem ao lado deles, nada de museu, só um conjunto habitacional — o Pilar — e um centro de distribuição de cervejas.
Aberto em 1969, o túnel liga a Cidade Alta à Baixa, e passa por baixo do bairro do Santo Antônio Além do Carmo, no Centro Histórico, onde os turistas provavelmente planejavam chegar.
Naquele início de tarde ensolarada de 15 de fevereiro em Salvador, 1,8 mil turistas japoneses procuravam lugares para desbravar, depois de desembarcarem do Peace Boat, embarcação japonesa que tinha deixado o Rio de Janeiro dois dias antes.
Era um turno de tráfego intenso para policiais do Batalhão de Policiamento Turístico (Beptur). Durante a temporada de cruzeiro, de outubro a fim de março, eles integram a Operação Navio, que auxilia turistas que descem no Porto de Salvador, no Comércio.
O trabalho envolve a abordagem de visitantes perdidos, com necessidade de orientação ou qualquer outra demanda. Nos policiais, esse serviço especializado tem despertado interesse em idiomas, histórias e culturas.
Pouco depois das 6h daquele dia, os soldados Joab Lobo e Lemuel Bispo saíram da sede do batalhão, na Baixa dos Sapateiros, com destino a rondas no Comércio, nos principais pontos turísticos e nas vielas não turísticas dos arredores.
Depois de pelo algum tempo de ronda, Lobo e Bispo avistaram os japoneses. Os dois são fluentes apenas em português, mas, no batalhão turístico, mesmo quem não fala inglês aprende expressões básicas do idioma mais falado do mundo. "O enrolation", brinca Joab.
“English?”, perguntou ele, ao estacionar a moto ao lado dos estrangeiros. “No”, respondeu o casal. “Spanish”?, insistiu. “No”, os estrangeiros retrucaram. A única palavra em inglês dita pelos policiais que o estrangeiro entendeu mesmo foi “Dangerous”, perigo em português.
Joab, então, sacou o celular do bolso e tentou utilizar um aplicativo de tradução, aliado nesse trabalho de aproximação com turistas. O sinal de internet, no entanto, costuma ser ruim por aquelas bandas. Foi aí que os policiais apelaram para a linguagem universal: a do corpo.
Com movimentos dos braços, a dupla tentou indicar por qual caminho os estrangeiros deveriam seguir para voltar ao Porto de Salvador.
Os policiais não podiam levar os dois até lá. Estavam em duas motos, sem capacetes extras. Um ônibus parou ao lado no momento em que os colegas pensavam na melhor saída, e o motorista ofereceu carona para os japoneses, que não entendiam mesmo nada a essa altura.
Por meio de mímica, os policiais os instruíram a subir no ônibus, ao qual acompanharam de moto. Eles obedeceram.
Em outro ônibus que passava ao lado, os passageiros fofocavam, sem saber o que se passava lá fora: “Só pode ser gente importante para estarem escoltando”.
A temporada de cruzeiros em Salvador começa em outubro, mas tem o pico no verão, entre dezembro e março. Nesse período, são esperados 79 navios, com 325 mil turistas. Até então, a Operação Navio já orientou mais de 600 turistas.
A operação é organizada a partir de informações prestadas pela coordenação do Porto de Salvador, com dados sobre a chegada de novas embarcações, quantidade de passageiros, tripulação, hora desembarque, momento de saída.
Além do Beptur, o 18º Batalhão de Polícia Militar, o Batalhão de Polícia de Pronto Emprego Operacional e a 16ª Companhia Independente participam da operação, de carro, moto ou a pé. O número de policiais nas ruas depende da quantidade de gente que vai chegar.
Por exemplo, aquele dia 15 exigiu dezenas de policiais — o número exato não foi informado. Em cada viela, os agentes encontravam um japonês, às vezes, meio desencontrado.
Entre os forasteiros que chegam aqui, turistas dessa nacionalidade têm um comportamento bem conhecido: gostam de caminhar muito, andam rápido e, às vezes, a esmo.
A estagiária Adriane Gonzaga, 28 anos, se deparou com um deles logo na saída do serviço, por volta de 12h, na escada do Vale de Nazaré, a 750 metros do túnel Américo Simas.
Atenta no movimento ao redor, pelos assaltos na região, avistou um idoso. Só podia ser um "turista desavisado", pensou ela.
Com os olhos puxados arregalados, e a alça de uma câmera pendurada no pescoço, ele realmente parecia estar perdido.
A estudante de serviço social chegou a virar de costas para ver se o senhor precisava de ajuda, mas o contato entre eles parou por aí. Cinco minutos depois de entrar no ônibus de volta para casa, ela sentiu o veículo reduzir a velocidade.
“Aí percebemos que os policiais estavam tentando ajudar um casal. Só depois vi que também eram japoneses perdidos e não alguém que estava sendo escoltado, como o pessoal achava que era”, conta ela, aos risos, que lembrou de uma viagem em que se perdeu em Córdoba, na Argentina, depois de algumas cervejas.
O soldado Lemuel Bispo sempre quis ser policial, e, aos 26, realizou o sonho dele. Há cinco anos, ele trabalha também com turistas — começou no posto do Beptur no Aeroporto de Salvador. Lá, acompanhou histórias como a de um coreano que depois de dias tendo o chão do terminal como sua casa, desapareceu por Salvador.
Um dia, surgiu a informação de que ele estava na Barra. Policiais foram lá checar, e encontraram o rapaz, com quem improvisaram no inglês e na boa vontade.
"Aí conversamos, fizemos toda a intermediação para ele voltar para casa", diz Lemuel. O trabalho com outras culturas e realidades despertou nele interesses antigos, como o pela História.
"A nossa atividade é o serviço policial. Contudo, no dia a dia, trabalhando também com turistas, a gente conseguiu absorver muito conhecimento da cultura da Bahia".
O Castelo Garcia D'Ávila, estrutura do século 16 em Mata de São João que já foi a sede do maior latifúndio do país, tem sido seu principal objeto de pesquisa. "Você sabia que aquelas terras iam até o Maranhão?", pergunta à reportagem. "É um lugar extremamente lindo, que faz parte da nossa história. Fui com minha família também. Acho que, nesse sentido, o turismo também serviu até para nós que trabalhamos com segurança”.
"É um trabalho que nos aproxima ainda mais [das pessoas]. A gente faz todo o processo de acompanhamento", acredita o tenente-coronel do Beptur, Taylon Cavalcante.
O soldado Joab ficou mais interessado por museus da cidade onde nasceu — em especial a Casa da Música, no Comércio — e pretende aprofundar os estudos em espanhol.
Há um mês, uma mulher da República da Guiné, na África, desembarcou em Salvador, com o filho pequeno. Os dois, no entanto, chegaram à capital baiana por engano — ou por uma armadilha de um coiote.
Na verdade, eles achavam ter desembarcado em El Salvador, país na América Central. Por volta das 15h, os dois foram encontrados pelo soldado Rocha, que é fluente em quatro idiomas. “Ficamos fazendo todo esse trâmite com esse pessoal para retornar para a casa “, lembra o capitão.
A orientação oficial é que, se encontrar um estrangeiro perdido, você ligue para o 190. Na última quarta-feira (21), um turista italiano que estava perdido na cidade e era procurado pela família foi encontrado a partir do sistema de reconhecimento facial.
Ele passava pela Praça da Piedade, no centro de Salvador, e está em uma unidade de acolhimento da Igreja Católica.
A Polícia Civil não respondeu quantos turistas são considerados desaparecidos na Bahia, hoje. O registro mais recente de desaparecimento foi o de Hosan Imam, 32, que desceu de um navio de carga de Bangladesh para conhecer Salvador em dezembro passado, e não voltou para a embarcação depois.
Ele segue procurado — como não era turista, a ocorrência é atendida pela Delegacia de Proteção à Pessoa.
“Isso, um turista se perder um pouco pelo caminho, pode acontecer com qualquer um, ninguém está isento. Há muitos casos que emocionam e estamos aqui para prestar o melhor serviço”, afirma a major Cláudia Mara.
O caso dos japoneses, por exemplo, marcou os policiais que participaram da ação daquele dia. Como não houve necessidade de registrar uma ocorrência formal, os dados dos estrangeiros são desconhecidos.
O ônibus que deu carona ao casal, escoltado pelos soldados Joab e Lemuel, parou no Porto de Salvador para os dois descerem.
À distância, Joab arriscou para eles um “arigatô” e “sayonara”, que significam em português, respectivamente, “obrigada” e “adeus”. O casal retribuiu com um aceno antes de voltar ao navio.
Não se sabe se, depois disso, eles enfim conhecerem o Pelourinho. Mais tarde, naquela noite, o navio em que os milhares de japoneses estavam partiu de Salvador.
A próxima parada era a cidade de Walvis Bay, na Namíbia, a 11 dias de distância pelo mar.