Para fazer render, dendê que vem do Pará é misturado a outros produtos até chegar na Bahia

Sem fiscalização e padrão de qualidade, dendê com mistura que leva abóbora e óleos diversos é alvo de críticas de produtores e e consumidores

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  • Larissa Almeida

Publicado em 17 de abril de 2024 às 06:00

Especialista aponta 4 formas de produção de azeite de dendê na Bahia
Especialista aponta 4 formas de produção de azeite de dendê na Bahia Crédito: Marina Silva/CORREIO

O caminho que o dendê faz até chegar nos pratos dos baianos envolve a extração do fruto do dendezeiro de dois estados diferentes. Isso ocorre porque, com o intuito de suprir a demanda interna, a Bahia importa o ingrediente diretamente do estado do Pará, que lidera a produção nacional do fruto – a Bahia ocupa o segundo lugar, mas com produção bastante inferior. No processo de deslocamento de Belém até os portos de Salvador, no entanto, especialistas e consumidores acreditam que o dendê vindo do estado do Norte do país é adulterado com o objetivo de se assemelhar ao que é produzido em território baiano.

“Duas coisas importantes em relação a esse dendê do Pará: a primeira é que ele é um dendê refinado e a segunda é a possibilidade de misturas, que é chamada de prostituição do dendê. Teve uma época que estava na moda misturar o dendê de lá com abóbora, além de óleos baratos, como o de oliva. Tudo isso para fazer render e suprir a demanda que é muito maior do que a oferta”, destaca André Souza, produtor de dendê no município de Camamu, no Sul da Bahia, e professor titular da Universidade Estadual do Sudoeste Da Bahia (Uesb).

Rita Santos, presidente da Associação Nacional das Baianas de Acarajé (Abam), também acredita que o dendê do Pará é adulterado quando está na Bahia. “Tem mistura, pois de uma carreta querem [fazer] três. A maioria do azeite de dendê produzido no Pará tem seu destino para o biodiesel, enquanto na Bahia [o destino] é para a alimentação humana”, afirma.

A diferença nos tipos de dendê, que coloca, de um lado, aquele feito para ser consumido através de quitutes típicos da culinária baiana e, do outro lado, aquele utilizado no fabrico de produtos, é explicado pelo técnico em agropecuária Valdeni Pereira de Oliveira, que defende que a mistura do dendê com outras substâncias não é uma prática comum, e só é feita por produtores que fazem uso de ‘má-fé’.

“No Pará, tem o dendê tenera e tem o híbrido, que é o interespecífico. São variedades que uma tem mais oleínas do que o outro. O dendê tenera tem mais massa e é mais desenvolvido. O dendê híbrido tem um divisor igual entre a parte amarela e vermelha, e tem mais oleína. O sabor verdadeiro do dendê é o tenera, mas atualmente a Bahia importa os dois. O híbrido, por ser um cruzamento de uma espécie africana com uma espécie amazonense, as pessoas comentam que são misturados com outros óleos de outra qualidade. Existem produtores de todo tipo, mas não acredito que no Pará façam isso, não, porque eles têm muita produção”, diz.

De acordo com André Souza, a adulteração costuma acontecer quando o fruto do dendezeiro chega na Bahia. “Isso era comum aqui na região. Eu vinha para Camamu comprar o dendê e levar para fora, para Porto Seguro e, no meio do caminho, via pessoas adulterando o dendê”, conta.

Até que ponto a adulteração é considerada legal é um mistério. Tudo isso porque, de acordo com as pessoas ouvidas pela reportagem, não há um órgão ou entidade que fiscalize a qualidade do dendê produzido na Bahia. “Ninguém fiscaliza. Aqui, temos as empresas fazendo por si, porque não há política pública. São as empresas que dão o norte do processo produtivo. No Baixo Sul não existe fiscalização nenhuma sobre a produção do dendê. Não tem um padrão de qualidade e esse é um grande problema, porque tem essa questão séria de câncer que estão acometendo as baianas de acarajé e está ligado ao tipo de dendê que elas usam para fazer a fritura”, pontua André Souza.

Segundo Rita Santos, a Vigilância Sanitária é a responsável pela fiscalização no que diz respeito à higiene. Contudo, no que tange à qualidade do dendê, outros especialistas reforçam que não há fiscalização específica.

Sem padrão de qualidade estabelecido, quem sofre são as baianas de acarajé que são, via de regra, as maiores consumidoras do dendê na Bahia. A baiana de acarajé Elaine Assis, filha da falecida Lindinalva de Assis (mais conhecida como Dinha e dona de um dos pontos de acarajé mais tradicionais da Bahia), conta que utiliza o dendê vindo do Pará e nota que há mistura com outros produtos, que prejudica sua saúde e a qualidade do alimento servido aos clientes.

“Temo por minha profissão, pois uma das matérias-primas mais importantes está cada vez mais difícil de ser encontrado com qualidade e, muitas vezes, [vem] misturado com outros produtos, como abóbora. Isso de uma forma termina impactando na qualidade do nosso produto consumido por nossos clientes. [...] Antigamente as pessoas chegavam em nosso tabuleiro e, a uma distância significativa, sentia um cheiro do bom dendê. Hoje, com o dendê que trabalhamos isso é muito difícil de acontecer e as pessoas ainda julgam nosso produto e a qualidade”, relata Elaine.

Quem se queixa também é a baiana de acarajé Alessandra Braga, de 44 anos, que tem um ponto de acarajé na Orla de Itapuã e, há anos, sofre com a decadência da qualidade do dendê que utiliza. De tão incomodada com a situação, ela desenvolveu um método para driblar a perda de qualidade do acarajé que faz. “Hoje, botamos o azeite para fritar o acarajé e não sentimos mais aquele cheiro que pegava o cliente longe e trazia para o tabuleiro. O azeite não dá o espaço de meia hora e já virou aquela graxa e aquele óleo. Então eu, pelo menos, trabalho assim: a cada meia hora, vou colocando dois copos de azeite de 500 mL. Vai fritando e eu vou repondo para conservar o acarajé com a textura maravilhosa”, conta.

Apesar de conseguir dar um jeito para manter a qualidade do que vende, Alessandra se preocupa por não poder fazer o mesmo em relação à saúde. Ela, que perdeu duas colegas de profissão que tiveram problemas de saúde por conta da exposição à fumaça do dendê, cobra providências das autoridades. “Precisamos que as autoridades e o Estado olhem para essa situação e venham dar oportunidade aos produtores de dendê na Bahia. Procurar ajudar e investir para que tenhamos de volta a fabricação própria na nossa Bahia. Roldões tem, mas estão todos parados porque não existe apoio”, reivindica.

*Com orientação da subchefe de reportagem Monique Lôbo