Por que ainda não superamos a dengue? Entenda por que a doença ainda castiga tanto

Velha conhecida dos brasileiros, arbovirose provoca mais uma epidemia no país

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  • Thais Borges

Publicado em 24 de fevereiro de 2024 às 05:00

Foco de Aedes aegypti
Foco de Aedes aegypti Crédito: Evandro Veiga/Arquivo CORREIO

No início, ele não tinha nome. Era um mosquito como outro qualquer - sem gênero, espécie, nada, trazido da África nos primórdios da ocupação portuguesa no Brasil. Em meio ao tráfico de escravizados patrocinado pelos europeus, navios saíam do continente africano trazendo não apenas seres humanos, mas animais como o inseto hoje chamado Aedes aegypti.

Cinco séculos depois, o mosquito se perpetuou, se tornou um velho conhecido dos brasileiros e segue provocando epidemias praticamente anuais no país - além da dengue, o Aedes aegypti tem, em sua conta, infecções de zika e de chikungunya. Neste momento, 38 municípios decretaram emergência por dengue apenas na Bahia, enquanto outros seis estados no país enfrentam a mesma situação, além do Distrito Federal.

De mãos dadas, dengue e mosquito formam um combo difícil de ser superado. Mesmo após tanto tempo, essa combinação ainda deixa um rastro de estragos, vítimas fatais e indagações sobre a nossa capacidade de controlá-lo. Em todo o país, são 740 mil casos, além de 151 mortes confirmadas, segundo o Ministério da Saúde.

Uma das principais razões para o quadro atual é o próprio inseto, que se adaptou muito bem - e até prefere - habitar os espaços urbanos. Nas cidades, ele encontra o cenário ideal, como explica o médico infectologista Guilherme Ribeiro, pesquisador da Fiocruz Bahia e professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (Ufba).

“O ambiente é ideal para sua reprodução, porque há muitos utensílios ou recipientes artificiais com água acumulada. Isso vai de vasos, garrafas e latas até caixas d’água. É impossível a sociedade atual retirar esses recipientes da nossa realidade. Como a nossa vida mudou muito nos últimos 100 anos, é muito difícil a erradicação do mosquito”, explica Ribeiro, que é doutor em Biotecnologia em Saúde e estuda eco-epidemiologia.

A esse versado agente, somam-se outros fatores, especialmente a forma como o vírus se propaga, medidas que foram abandonadas nos últimos anos e a dificuldade em encontrar uma vacina efetiva contra a doença. O primeiro imunizante contra a dengue foi incorporado ao Sistema Único de Saúde (SUS) apenas em dezembro do ano passado, com a campanha tendo sido iniciada no início deste mês, com crianças de 10 e 11 anos.

Ainda assim, trata-se de uma vacina japonesa, já que o imunizante brasileiro ainda não foi aprovado. Além disso, mesmo que o cenário seja promissor a longo prazo, as doses inicialmente disponibilizadas não vão conseguir atender nem mesmo todos os públicos de maior risco.

"Tivemos a incorporação da vacina como um elemento, mas que não é uma panaceia para esse momento agora. A vacina é uma coisa para médio e longo prazo. Como tem doses em quantitativos tímidos, precisa sim priorizar populações vulneráveis com maior risco, mas investir na consciência sanitária da população", diz o pesquisador Ramon Saavedra, doutorando em Saúde Coletiva no Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/Ufba).

Histórico

Apesar de estar na natureza pelo menos desde o século 16, tendo surgido na região do Egito (daí o latim 'aegypti', que significa egípcio), o Aedes aegypti só foi catalogado cientificamente em 1762, como Culex aegypti. Erroneamente, ele foi considerado do gênero Culex - que tem mais de 300 espécies, incluindo a muriçoca comum. Na taxonomia, um nome científico é formado por dois termos, sempre em latim: o gênero, que é a primeira palavra e vem com a primeira letra maiúscula, e a espécie, que é a segunda e toda grafada em minúsculas.

No século seguinte, o inseto foi catalogado mais duas vezes: em 1828, como Culex taeniatus, e em 1848, como Culex excitans. Foi apenas em 1962 que ganhou o nome pelo qual se tornou famoso e foi classificado como uma espécie do gênero Aedes. Os mosquitos desse gênero são conhecidos por terem as famosas listras brancas e pretas no corpo.

Em um período muito curto da história recente do Brasil, o Aedes aegypti foi considerado erradicado. Foi especificamente em 1955, devido às medidas de controle da febre amarela, implantadas no início do século 20. No entanto, já no final dos anos 1960, o mosquito já tinha sido reintroduzido devido ao relaxamento das medidas de prevenção. Os relatos de dengue datam de bem antes, mas o primeiro caso documentado no país foi registrado apenas em 1982, em Boa Vista (RR).

Hoje, há infestação do inseto em mais de 90% dos municípios brasileiros - ou seja, não apenas presença do vetor, mas populações imensas por aí. "A partir da década de 1980, a dengue volta com força e vem se comportando em epidemias registradas ciclicamente. O modo de vida do mosquito está intimamente ligado ao reflexo do mundo moderno", diz o pesquisador Ramon Saavedra, do ISC.

Ao longo de todo esse período, a dengue vem sendo estudada. Desde os anos 1990, o Instituto Butantan se dedica a tentar encontrar uma vacina contra o vírus, por exemplo. Em 2009, a instituição deu início às pesquisas da candidata atual à vacina, que tem prognósticos considerados animadores. Neste mês, os resultados do estudo, atualmente em fase 3, foram publicados na revista New England Journal of Medicine e indicam que a proteção é de até 79,6% dos imunizados. A previsão é de que ela seja enviada à Agência Nacional de Vigilância Sanitária este ano.

Em todo o Brasil, existem 17 projetos de pesquisa e 24 cientistas com bolsas dedicadas a estudar a doença, em diferentes frentes, apenas apoiados neste momento pelo CNPq, sem contar outras agências de fomento. Há, ainda, outros 12 pesquisadores e sete projetos ativos focados em investigações sobre o Aedes aegypti que são financiados pelo órgão, segundo o Mapa de Fomento em Ciência, Tecnologia e Inovação. A zika, por outro lado, tem sete projetos e 36 bolsas de pesquisadores em curso, enquanto a chikungunya tem 10 bolsistas e seis projetos.

Quando comparado a outras doenças, como a covid-19, os estudos sobre dengue têm menor expressividade numérica: só no CNPq, são 381 bolsas e 177 projetos. No entanto, durante a pandemia, o órgão lançou chamadas específicas sobre coronavírus, o que ajudaria a explicar o universo maior. Não estão consideradas aqui também as bolsas já encerradas nem projetos concluídos, que podem ter levado a inovações e descobertas científicas.

A preocupação dos cientistas brasileiros nem sempre foi acompanhada do mesmo sentimento por parte de outros países, como geralmente acontece com doenças endêmicas de regiões tropicais. Historicamente, infecções comuns nesses país são negligenciadas por países mais desenvolvidos, que costumam ter mais dinheiro para investimento em pesquisa, como lembra o médico infectologista Victor Castro Lima, coordenador de infectologia do Hospital Mater Dei Salvador e também do Hospital Emec, em Feira de Santana.

Embora a vacina aprovada tenha sido de uma empresa japonesa, não é difícil imaginar que, se mais países estivessem envolvidos em iniciativas com essa, o imunizante teria sido formulado mais cedo. "Existe uma questão histórica que vale levar em consideração que é onde a dengue ocorre. Não se tem uma preocupação em larga escala para estudar e desenvolver novas tecnologias de combate à doença", explica ele, que é doutor em doenças infecciosas pela Universidade de São Paulo.

O aspecto econômico também chega ao nível individual. "Por mais que as pessoas saibam o que fazer, muitas vezes isso é esquecido e esse combate ocorre em períodos em que já estão acontecendo surtos de dengue, o que acaba sendo uma estratégia de prevenção muito frágil. Muita gente também não tem acesso a outras estratégias, como o uso de repelente", acrescenta Castro Lima.

Alterações

Nos primeiros anos, a dengue se comportava de forma sazonal, com um aumento de casos esperado em um período do ano. Com o tempo, esse período também foi se ampliando e se misturando a outros meses do ano.

“Tivemos as alterações climáticas, então, na mesma hora que está chovendo muito em uma região, fica quente. Se você tem acúmulo de água e alta temperatura, os ovos vão eclodir”, alerta a diretora da vigilância epidemiológica da Secretaria da Saúde do Estado (Sesab), Márcia São Pedro.

Embora as ações de combate à dengue sejam comuns, é como se, nos últimos anos, muitas delas tenham sido deixadas de lado. Durante a pandemia da covid-19, houve um afrouxamento das medidas, devido ao contexto epidemiológico da época. Municípios foram abandonando ou reduzindo ações de prevenção, como a limpeza urbana, o trabalho dos agentes de endemias ou mesmo a entrada das autoridades de saúde em imóveis fechados.

“Houve um relaxamento, uma displicência ao longo de vários anos, por parte do governo federal e de vários governos estaduais no combate ao mosquito. Tem que ser contínuo e sistemático, mas isso só foi retomado com energia no ano passado”, pontua o médico sanitarista Claudio Maierovitch, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).

Outros gargalos estruturais citados por ele são a ausência de coleta de lixo, problemas no abastecimento de água e na drenagem das cidades, além do cuidado com terrenos e áreas públicas. “Isso nos traz para uma situação de um aumento muito grande na presença dos mosquitos e, portanto, na transmissão do vírus dengue”, acrescenta.

Ao mesmo tempo, não eram incomuns os relatos de que moradores das cidades vinham se recusando a receber os agentes de endemias em casa. Márcia São Pedro, da Sesab, não acredita que houve erros na escolha de estratégias de combate à dengue, como aconteceu com a covid, por exemplo. No início da pandemia do coronavírus, havia um foco grande na limpeza de superfícies que posteriormente se mostrou ineficaz.

“A covid era uma doença nova, que a gente estava aprendendo a lidar. Na dengue, existe algo que é muito claro: combate ao vetor é limpeza urbana, identificação de criadouros e tratamento. Quando você abaixa a guarda, os casos vão aumentar. Não tem o que não deu certo, mas o que se deixou de fazer. No enfrentamento à dengue e às arboviroses, não pode vacilar”, enfatiza.

Com crescimento e ocupação desordenados, o aumento do desmatamento também passou a proporcionar interações que, antes, não existiriam com a natureza. A dengue, assim como outras arboviroses transmitidas pelo Aedes aegypti, ainda tem um componente individual forte: diferentes pesquisas estimam que cerca de 80% dos focos estejam nas casas.

“É um barril de pólvora, porque é um problema sanitário, climático e social. É sanitário porque ciclos de epidemia trazem sobrecarga aos serviços de saúde. É climático por conta das mudanças e da globalização que potencializa o deslocamento dos vírus circulando. Mas, acima de tudo, é social porque envolve um comportamento de educação e uma mobilização. Só o setor de saúde não vai conseguir sanar essa situação”, pondera Ramon Saavedra, do ISC.

Numa cidade como Salvador, o médico infectologista Guilherme Ribeiro lembra que, das classes sociais mais altas até as mais baixas, o abastecimento de água é feito por armazenamento. Mas a rotina nas próprias casas é um fator relevante.

"O mosquito não vai viajar longas distâncias se ele não precisar. Em geral, ele tem um ciclo de vida próximo do local onde se originou e procura se abrigar naquela localidade", acrescenta. Alguns cálculos indicam que o inseto se desloca em até 100 metros.

A adaptação do mosquito passa pelo fato de que ele não é capaz de se produzir apenas em água limpa ou potável, de acordo com o médico infectologista Guilherme Ribeiro, pesquisador da Fiocruz. Já existem registros de que o mosquito cumpre a fase aquática em águas com material orgânico, por exemplo.

Vírus

Muito antes da doença existir em pessoas, o vírus da dengue já estava na natureza. Não se sabe onde ou quando, de maneira exata, mas as hipóteses dos pesquisadores são de que ele tenha se desenvolvido em primatas não-humanos e passado a infectar humanos na África ou no Sudeste Asiático, há cerca de mil anos.

Por ter o RNA como material genético, o vírus da dengue pode ser comparado a outros como o da covid-19 ou da Influenza. No entanto, ao contrário desses dois, o da dengue é bem mais estável e tem menos potencial de sofrer mutações.

O vírus da dengue tem quatro sorotipos, que é de onde vem a conhecida classificação entre ‘dengue tipo 1, tipo 2, 3 ou 4’. Eles são muito parecidos entre si, a ponto de compartilharem cerca de 65% do seu material genético. Ainda assim, não podem ser considerados iguais devido às diferentes interações que cada um deles têm com os anticorpos.

Uma pessoa que teve dengue tipo 1 pode ter dengue tipo 3, por exemplo, em um mesmo ano. “O que muda entre eles é a sua estrutura de material genético, que é o RNA. São estruturas diferentes e você tem uma resposta imunológica diferente”, explica o virologista Gúbio Soares, coordenador do Laboratório de Virologia da Ufba. Segundo ele, é como uma bola de futebol feita de gomos pintados. Uma pode ter um gomo vermelho, um azul e um branco em outra posição. Outra bola do mesmo tipo, por outro lado, vai ter essas mesmas cores em uma posição diferente.

Atualmente, a vigilância genômica na Bahia identificou dois desses subtipos circulando no estado: o 1 e o 2. No ano passado, o tipo 3, considerado o mais agressivo dos quatro, foi detectado no país pela primeira vez depois de mais de 15 anos sem registros. No país, os três tipos circulam atualmente.

“O grande problema é que quando você tem uma infecção por dengue tipo 1, por exemplo, e depois tem novamente uma infecção por 2, 3 ou 4, a resposta imunológica ao segundo vai ser mais agressiva. Muitas vezes, a resposta dos anticorpos é tão forte que ataca o próprio indivíduo”, acrescenta Soares, citando consequências como a diminuição de plaquetas e sangramentos.

Sintomas

Na parte clínica da doença, a dengue se comporta de forma diferente da covid, de acordo com o infectologista Victor Castro Lima, do Hospital Mater Dei. No coronavírus, cada variante vinha se apresentando com alguns traços diferentes. Com a dengue, não é assim.

“A gente não costuma ter grandes mudanças no quadro clínico na ocorrência das epidemias. O quadro é muito clássico. É uma doença predominantemente de febre alta, dores musculares, nas juntas, dores de cabeça , musculares, no fundo dos olhos”, cita o médico.

A maioria dos casos é leve e não precisa de hospitalização. No entanto, é preciso ter cuidado com os chamados sinais de alarme: ocorrência de sangramento, vômitos, dificuldade para respirar e alteração do nível de consciência. Em caso de qualquer suspeita, a recomendação é buscar um médico.

“Assim, a pessoa vai receber as orientações adequadas relacionadas à hidratação, que pode ser oral, mas, em alguns casos, deve ser venosa. Existem determinadas medicações contraindicadas em suspeita de dengue, então numa consulta ela também vai receber as orientações das medicações”.

Erradicar dengue é impossível e foco deve ser no controle

Entre os cientistas, há quase um consenso: não há como erradicar o vírus da dengue - ao menos, não enquanto houver grandes quantidades de mosquito por aí. Se houver vacinação efetiva em larga quantidade, porém, é possível um dia alcançar o que foi feito com a varíola. A doença foi eliminada em todo o mundo na década de 1980.

“As vacinas estão há anos sendo produzidas e até hoje não têm resultados. Essa vacina atual não resolve o problema. A epidemia de dengue no Brasil ainda está no início, ainda não atingiu seu pico”, alerta o virologista Gúbio Soares, coordenador do Laboratório de Virologia da Universidade Federal da Bahia (Ufba).

O que também é factível pensar é no controle da doença. Isso foi feito com a febre amarela no século 20. Ela foi eliminada do contexto urbano, de modo que, atualmente, só tem o ciclo selvagem.

"O mosquito foi eliminado do Brasil na metade do século 20. Entretanto, ele voltou e foi se expandindo para todo o território nacional de forma que hoje não é possível mais falar em eliminação do mosquito. Nós temos que tentar manter o nível de proliferação do mosquito mais baixo possível”, diz o médico sanitarista Claudio Maierovitch, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).

Segundo a coordenadora do Centro de Controle de Zoonoses (CCZ) de Salvador, Isolina Miguez, a cidade tem dois mil agentes de endemias que fazem esse trabalho nas ruas, mas ainda existe uma dificuldade quanto à conscientização da população.

"Tudo que você for fazer que possa armazenar água pode se transformar num criadouro, então a gente pede que a população observe se estiver circulando e encontrar algo com água. Se for algo como um tanque ou tonel, pode ligar para a gente no 156 e os agentes poderão fazer o tratamento com larvicida".

Algumas estratégias que eram populares no passado, porém, não são mais bem vistas atualmente. É o caso do uso indiscriminado dos inseticidas, com os carros do tipo fumacê, segundo o infectologista Guilherme Ribeiro, da Fiocruz. A medida não seria mais indicada porque não tem ação eletiva, ou seja, não eliminaria apenas o Aedes aegypti. Ela afeta outros tipos de insetos, o que pode gerar desequilíbrio ecológico, inclusive afetar insetos que trazem benefícios, como as abelhas com a polinização.

Além disso, o uso contínuo de inseticidas acaba selecionando mosquitos resistentes aos químicos, que serão aqueles que vão sobreviver às aplicações e se reproduzir. “Essas abordagens têm aplicações muito específicas e, em geral, as secretarias de saúde aplicam só nesses casos. Você pode borrifar numa rua com surto para controlar aquela transmissão, mas se é desordenado por rotina, você propicia o surgimento de insetos resistentes sem trazer grandes ganhos”.