Quilombo Pitanga dos Palmares se despede de Mãe Bernadete

Líder quilombola foi assassinada a tiros dentro de casa, na presença dos netos

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  • Millena Marques

Publicado em 19 de agosto de 2023 às 05:00

Comunidade do Quilombo Pitanga de Palmares chora por Mãe Bernadete Crédito: Paula Fróes/CORREIO

"Dona Dete presente", exclamou uma senhora no meio da multidão presente ao velório de Mãe Bernadete, nesta sexta-feira (18), quando familiares, amigos, vizinhos e autoridades públicas locais e nacionais prestaram homenagem àquela que é considerada a grande ‘mãe’ da comunidade e uma autoridade moral de força para guiar seus muitos ‘filhos’. Embora não ocupasse oficialmente o cargo de ialorixá, dona Bernadete Pacífico, feita no candomblé há 50 anos, trazia em si a ancestralidade majestosa das iás africanas ancestrais.

A Palmares de Simões Filho só tinha uma estrada de barro quando ela chegou ao local. Os primos Maria de Lourdes da Conceição, mais conhecida como dona Baía, e Domingos da Conceição, não detalharam o ano em que Mãe Bernadete se tornou moradora da comunidade, situada entre Simões Filho e Camaçari, na Região Metropolitana de Salvador, mas garantiram que todos os benefícios destinados aos moradores foram conquistados pela sua luta, uma verdadeira potência negra, feminina e filha de santo de tamanha relevância nas lutas sociais que facilmente ganhou o epíteto ‘Mãe’ antes de seu nome de registro.

"Eu tenho 64 anos aqui e posso dizer que ela era a nossa mãe, ela construiu tudo na comunidade. Agora, quem vai ficar no lugar dela?", perguntou Domingos.

Mãe Bernadete lutava pela dignidade da comunidade. Foram muitas viagens à prefeitura para conquistar direitos básicos para a comunidade, como fornecimento de água e energia. Não dispensava, ainda, os cuidados caseiros quando algum morador adoecia.

"A comunidade está arrasada. Não tenho palavras para descrever esse momento, ainda não estou acreditando no que aconteceu", disse Edna Batista, moradora do Quilombo Pitanga dos Palmares que conviveu com Mãe Bernadete por13 anos. Na noite do assassinato, Edna chegou a conversar com a líder comunitária. "Nós estávamos fazendo um trabalho comunitário para conseguir cascalho para colocar na estrada do quilombo", explicou.

As lutas de Mãe Bernadete impactaram, diretamente, as vidas de 300 moradores do quilombo, entre a sede principal e sua extensão. Há anos, ela sonhava com a titulação do território. Em 2015, conseguiu o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), uma das etapas obrigatórias de titulação de terras quilombolas.

No entanto, dois anos após a publicação, perdeu um dos filhos, Flávio Gabriel Pacífico dos Santos, mais conhecido como Binho do Quilombo, executado em 19 de setembro de 2017.

De acordo com Wellington Pacífico, outro filho de Mãe Bernadete, os dois casos estão relacionados. "Eu queria entender como alguém tem coragem de disparar 20 tiros contra uma pessoa idosa, que estava com seus netos, de 19 e 12 anos, e que só fazia o bem? É crime de mando. Alguém mandou executar minha mãe", disse Wellington ao CORREIO.

De acordo com o advogado da família David Mendez, Mãe Bernadete sofria ameaças relacionadas à extração ilegal de madeira na área do Quilombo Pitanga dos Palmares, que está em uma Área de Proteção Ambiental (APA). "As mais recentes ameaças diziam à extração ilegal de madeira. Lá é uma APA e dentre as muitas brigas que Dona Bernadete capitaneava, ela era uma espécie de delegada da comunidade, com autoridade moral", pontuou Mendez.

Cerimônia para Iansã

A líder comunitária foi feita [iniciada] no candomblé há 50 anos, mas não ocupava cargos oficiais no terreiro. Por isso, teve um velório com a liturgia típica para os filhos e filhas de santo de destaque na comunidade. Durante a vigília, na sexta-feira, a comunidade entoou cantos para Iansã, a orixá que conduz as almas dos mortos ao outro lado, enquanto, ao redor do corpo de Mãe Bernadete, havia milho branco, como explicou a equede Nira [Ozenira Pimentel]. "Iansã vai receber a espiritualidade de Bernadete neste momento, que vai acolher e tomar conta dela. Qualquer iniciado no candomblé tem esse procedimento", afirmou.

Segundo Dona Nira, a fama de ialorixá de Mãe Bernadete foi estabelecida por causa do seu potencial como líder quilombola. "Como ela era uma líder comunitária, ela vai receber homenagens de católicos, evangélicos e de integrantes de religiões de matriz africana. Ela acolhia a todos, apesar de ser de matriz africana, ela era uma figura ecumênica", pontuou.

Mãe Bernadete era a Coordenadora Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq) e foi secretária de Políticas de Promoção da Igualdade Racial em Simões Filho, entre 2009 e 2016.

Comoção local e nacional

A morte da líder quilombola repercutiu em todo o Brasil. Por meio da rede social X, antigo Twitter, o presidente Luis Inácio Lula da Silva (PT) lamentou a morte de Mãe Bernadete e afirmou que representantes do ministérios da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos e Cidadania foram enviados à Bahia para acompanhamento do caso, anúncio feito também pelo titular da pasta, o ministro Sílvio Almeida.

"Com pesar e preocupação soube do assassinato de Mãe Bernadete, liderança quilombola assassinada a tiros. Bernadete Pacífico foi secretária de Políticas de Promoção da Igualdade Racial na cidade de Simões Filho e cobrava justiça pelo assassinato do seu filho, também um líder quilombola", escreveu o presidente.

O ministro de Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, prestou solidariedade à familia e enviou equipes da pasta até Simões Filho. "Expresso minha solidariedade aos familiares e à comunidade", publicou.

A ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, também publicou uma nota de pesar. "Lamento profundamente a morte de Maria Bernadete Pacífico, do Quilombo Pitanga dos Palmares, com quem me encontrei há menos de um mês juntamente com outras lideranças no Quilombo Quingoma, na Bahia". Na ocasião, Mãe Bernadete teria informado à ministrado sobre as ameaças que sofria.

A ministra da Igualdade Racial Anielle Franco também lamentou. "É muito doloroso ver nosso povo sendo levado de formas tão cruéis, por crimes motivados também por ódio. Uma comitiva liderada pelo MIR está indo à Bahia para garantir a proteção e defesa do território e de seus povos", escreveu. "Que os orixás acolham Mãe Bernadete. Toda a solidariedade aos familiares. E nosso profundo compromisso com todo o povo de axé!".

A Fundação Palmares, presidida pelo baiano João Jorge, expressou pesar. "A Fundação Cultural Palmares expressa profundo pesar pela morte da líder quilombola Mãe Bernadete”

Na Bahia, o ex-prefeito de Salvador e presidente da Fundação Índigo, ACM Neto (União Brasil), prestou solidariedade pela perda. "Conhecida em todo país pela dedicação às causas quilombolas, Bernadete Pacífico foi assassinada dentro de um templo sagrado. Minha solidariedade aos amigos, familiares e à comunidade. Que os responsáveis por esse crime cruel sejam urgentemente identificados e punidos".

O prefeito de Salvador, Bruno Reis, também lamentou a morte de Bernadete, relembrando o assassinato de Binho, o filho dela. "Não podemos permitir que esses crimes sejam banalizados. Em 2017, o filho de mãe Bernadete, Binho do Quilombo, também foi assassinado brutalmente e até hoje nada foi feito. A justiça precisa ser feita", escreveu o gestor municipal.

O governador Jerônimo Rodrigues afirmou, também pelas redes sociais, que determinou que as polícias Civil e Militar "sejam firmes na investigação". Ele disse ainda que outras secretarias do governo devem atuar no caso. "Deixo aqui meu compromisso na apuração das circunstâncias e um abraço, tanto de minha parte, quanto de Tatiana, à família e à comunidade. Não permitiremos que defensores de direitos humanos sejam vítimas de violência em nosso estado", escreveu.

A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) emitiu uma nota de pesar pela morte da coordenadora nacional e cobrou que o Estado garanta proteção às lideranças quilombolas.

"A Conaq exige que o Estado brasileiro tome medidas imediatas para a proteção das lideranças do Quilombo de Pitanga de Palmares. É dever do Estado garantir que haja uma investigação célere e eficaz e que os responsáveis pelos crimes que têm vitimado as lideranças desse quilombo sejam devidamente responsabilizados. É crucial que a justiça seja feita, que a verdade seja conhecida e que os autores sejam punidos. Queremos justiça para honrar a memória de nossa liderança perdida, mas também para que possamos afirmar que, no Brasil, atos de violência contra quilombolas não serão tolerados", diz um trecho da nota.

A deputada estadual Olívia Santana também usou as redes sociais para pedir uma investigação rigorosa do crime. "Não podem ficar impunes. Uma perda dolorosa e irreparável! Minha solidariedade aos familiares e à comunidade", escreveu.

O Ministério Público da Bahia (MP-BA) também prestou condolências à família da líder comunitária e afirmou que vai atuar no caso. "O MP presta seu compromisso de que atuará de forma firme, em parceria com as forças policiais, na apuração, identificação e responsabilização criminal dos autores", diz a nota.

A Universidade Federal da Bahia expressou, por meio de nota, ‘indignação e pesar’ pelo assassinato. "A crueldade com que Mãe Bernadete, de 72 anos, teve sua vida ceifada, com disparos à queima-roupa, torna o crime ainda mais bárbaro e exige rápida e firme resposta das autoridades, na identificação e punição aos responsáveis; mas também da sociedade, em forma de mobilização e reafirmação da luta por paz e pelo direito à terra, contra o racismo e a intolerância religiosa", diz um trecho do texto.

A Ordem dos Advogados do Brasil - seção Bahia (OAB-BA) também divulgou nota lamentando o crime. "Mãe Bernadete foi morta quando seus filhos e filhas do candomblé se preparavam para liturgias que seriam realizadas nos próximos dias, numa dupla violação ao direito constitucional à proteção aos locais de culto e aos territórios de comunidades tradicionais", diz o texto. Mais adiante, a entidade prestou solidariedade aos familiares de Mãe Bernadete e a comunidade e pediu apuração do caso.

"A OAB-BA conclama o Governo da Bahia e o Governo Federal a empreenderem todos os esforços necessários para identificar, julgar e condenar os assassinos de Mãe Bernadete e seu filho Binho do Quilombo e trazer justiça e paz ao Território Quilombola de Pitanga dos Palmares".