Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Nilson Marinho
Publicado em 12 de agosto de 2024 às 05:00
Em meio a uma centenas de pessoas que iam e outras tantas que voltavam, uma garota que não chegava aos 10 anos largou a mão da mãe em frente a uma faixa de pedestre em horário de pico na frenética Avenida Sete de Setembro, em Salvador. “Ali, mãe, ali”, gritou a garota apontando para o que lhe chamava atenção. >
A pequena tinha visto se destacar na multidão uma figura celestial, de asas e corpo coberto de prata. Aquele ser tinha pressa como as demais pessoas e não demorou a desaparecer no meio delas. “Um anjo, mãe, um anjo”, continuou a garota. >
Não era coisa de outro plano, questão de mediunidade ou algo assim. Um anjo de fato caminhou entre aqueles humanos e a garotinha não foi a única a vê-lo, até porque é impossível não notar Vitor Souza, de 31 anos, quando ele cobre parte do seu corpo com tinta prata para mais um dia de ofício como estátua viva. >
O artista de rua, natural do Mato Grosso do Sul, trabalha como estátua viva em Salvador desde que chegou à cidade em 2015. Se você é uma pessoa que anda muito pela capital baiana, já deve ter encontrado com ele no Centro Histórico, Barra ou Rio Vermelho. São nesses três bairros que Vitor costuma posar a espera do vintém do público.>
Sua história é marcada por rejeição, violência e incertezas, mas há capítulos de recomeços e esses merecem destaque. Todas as vezes em que esteve no chão, o artista recebeu “asas” de pessoas próximas ou desconhecidas. Com elas, ganhou altura e pôde voar quando achou que cortar o horizonte já não era mais possível.>
Em outubro de 2013, Vitor trabalhava em uma loja de calçados em São José do Rio Preto, interior de São Paulo, mas as coisas não iam bem. A pressão para atingir as metas de vendas era grande e nem sempre era possível alcançá-las.>
Naquele mês, chegou nas mãos dele a carta de demissão. Vitor foi posto para fora na companhia de outros 10 colegas. As contas chegaram, a situação financeira apertou e o jovem, sem ter como arcar com os meses de aluguel, cogitou morar na rua. Uma amiga, no entanto, não permitiu e pagou para ele uma semana de hospedagem em um hostel.>
“Fiquei em uma praça sem saber o que fazer, as pessoas prometiam emprego, mas não me chamavam. Eu avistei uma estátua viva e resolvi conversar, já que sempre que passava por ela contribuía com algumas moedas”, conta Vitor.>
A estátua viva percebeu que o rapaz não estava com o mesmo semblante de antes. Se colocou à disposição para ouvir o relato de desemprego de Vitor e foi além do “boa sorte”.>
“Ela me deu uma roupa branca com preto, do Charlie Chaplin. A tinta foi guache mesmo porque eu não tinha dinheiro para uma adequada. O primeiro dia foi vergonhoso, eu mal conseguia ficar parado porque tremia muito”, lembra.>
O primeiro dia como artista de rua rendeu a Vitor R$ 80 — metade desse dinheiro veio de uma única pessoa. Naquele momento, ele via o ofício de estátua viva apenas como algo passageiro, até conseguir um novo emprego de carteira assinada. A oportunidade no mercado de trabalho formal, no entanto, não veio.>
“Na hora a gente não entende, mas Deus faz tudo perfeito. Tudo na minha vida ia bem e do nada fui parar no fundo do poço. Hoje, eu entendo e sou muito grato”, comenta.>
Vitor chegou em Salvador na alta temporada de 2015, com o trade turístico prevendo um aumento de 10% no número de visitantes em relação ao Verão anterior. Além disso, estava previsto para aquele período o atraque de 60 navios apinhados de turistas de mais de 140 nacionalidades.>
“Os navios paravam e todo mundo tirava fotos. Era uma delícia, uma loucura. Em um único dia, o meu terceiro na cidade, fiz R$ 800. Estava em um hotel e comendo marmita, então usei esse dinheiro para alugar uma casa”, recorda.>
Tudo ia bem na vida de Vitor. O trabalho na rua lhe dava o sustento necessário e ele se sentia acolhido pela cidade, mas tudo mudou com a chegada da pandemia da Covid-19 em 2020. As restrições para conter o avanço do vírus vieram e o artista perdeu o palco.>
Sem plateia e trocado, ele se arriscou em Feira de Santana, mas por lá o cenário foi o mesmo. Restou como opção voltar para sua cidade natal, Paranaiba (MS).>
No município de pouco mais de 50 mil habitantes, Vitor passou a ter vergonha de ser uma estátua viva. Se antes era reconhecido e prestigiado nas ruas da capital baiana, em sua cidade natal, o trabalho dele não era bem visto pela família.>
“Gente da minha família me dizia que o que eu fazia era pedir esmola, até que em um Natal fui até uma festa na praça e comecei a fazer estátua. Foi um sucesso e até entrevista dei a uma rádio local. Infelizmente são os desconhecidos que nos valorizam”, lamenta.>
Encerrado o nefasto capítulo da pandemia, Vitor retornou a Salvador. Na cidade, ele diz ter construído raízes e família, pessoas que tiveram papéis fundamentais em sua vida e que hoje podem ser considerados pais e mães.>
“Eu nasci para viver nesta cidade. Eu não tenho pais biológicos, mas aqui é como se eu tivesse uma família inteira. Aquela mulher ali que vende coco é como uma mãe para mim”, diz Vitor ao apontar para uma senhora na esquina da Rua das Vassouras, no Centro Histórico.>
Às segundas, Vitor tira um tempo para ele, organiza a casa, a semana e vai à praia, quando o tempo permite. De resto, está nas ruas depois das 10h, quando não atrasa, e por lá fica até às 16h. Aos sábados e domingos, a rotina começa às 10h no Centro Histórico, continua às 16h30 no Farol da Barra e acaba no Rio Vermelho depois das 19h.>
Para se transformar em um anjo gasta de 20 a 30 minutos para preencher todo o corpo com a tintura prata. Para retirá-la são mais 20 a 30 minutos embaixo d’água e com ajuda de um sabonete. “Depois é só passar um hidrante e dormir tranquilo”, brinca.>
Em um bom dia de trabalho, o artista ganha de R$ 50 a R$ 150. Quando a plateia não está generosa, volta para casa carregando no bolso entre R$ 30 a R$ 50. Mas houve um dia em que um Pix de R$ 1 mil reais caiu em sua conta.>
“Era um Natal e eu estava na Praça do Campo Grande. Uma senhora de bengala e com muitas joias estava com sua família. Eles fizeram fotos ao meu lado e, ao terminar, a senhora pediu meu Pix e fez uma transferência de R$ 1 mil. Não acreditei”, conta.>
“De novembro a dezembro ocorrem essas coisas. Eu acho que o espírito natalino fala mais alto, e talvez com o décimo terceiro na conta, a pessoa faz algum propósito com Deus de abençoar alguém”, completa.>
No ano passado, em mais um dia de trabalho, Vitor estava comprando uma quentinha no Centro Histórico quando foi abordado por um homem com uma câmera a tiracolo. Era o fotógrafo Brian Baldrati que fotografa pessoas pelo Brasil e colhe os depoimentos delas para serem publicados em formato de vídeo em seu Instagram, onde há 1,9 milhões de seguidores. O making of da sessão de fotos e o breve relato da vida de Vitor foi visto por 2,5 milhões de internautas e curtindo por quase 195 mil deles.>
“O Vitor é um menino que sofreu muito. A mãe o abandonou com oito meses. Aos sete, foi estuprado por um primo. O pai não o aceitava por ser gay e foi expulso de casa aos 15 anos. Meus anjos eram a minha avó que faleceu e minha tia evangélica que nunca me apontou o dedo”, finaliza o artista antes de voltar para o palco.>