Terreiro centenário é homenageado na Câmara Municipal de Salvador

São 125 anos de existência e 90 anos de reconhecimento do  Ilê Asè Kale Bokun

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  • Emilly Oliveira

Publicado em 24 de agosto de 2023 às 05:30

 yalorixá Vania de Oyá - segurando microfone - entrou na Câmara com cortejo
yalorixá Vânia de Oyá - segurando microfone - entrou na Câmara com cortejo Crédito: Ana Lúcia Albuquerque/ CORREIO

As nove décadas de reconhecimento da fundação do terreiro Ilê Asè Kale Bokun foram celebradas com uma sessão especial, na Câmara dos Vereadores de Salvador, ontem (23). Ao todo, são 125 anos de existência, fazendo dela uma das casas de axé mais antigas de Salvador.

No axé, o velho é visto como aquele que venceu a morte, persiste e merece ser eterno. Caminho traçado há gerações pela família que lidera o Ilê Asè Kale Bokun, localizado no bairro de Plataforma. Para a yalorixá Vania de Oyá, de 60 anos, atual liderança religiosa da família, a homenagem simboliza uma vitória na guerra por respeito às religiões de matriz africana.

“A Câmara dos Vereadores é um dos espaços públicos que, outrora, nos fechou as portas. Hoje, essa mesma porta abre para nos homenagear. Para mim, para o meu povo de candomblé e para a sociedade, estar aqui é uma vitória. Principalmente, por ser um espaço construído pelas mãos do povo preto, em especial das mulheres”, celebrou a yalorixá Vânia.

Ao ser chamada para compor a bancada do Plenário Cosme de Farias, da Câmara Municipal, mãe Vânia atravessou as portas da sala entoando canções ancestrais, acompanhada por um cortejo de filhos de santo, familiares e amigos. Ao lado dela, sentaram-se o vereador Silvio Humberto, o presidente da Fundação Gregório de Mattos (FGM), Fernando Guerreiro e outras autoridades religiosas e políticas.

A homenagem foi proposta pelo vereador Silvio Humberto, que descreve o ato como essencial no contexto de violência contra líderes religiosos. “Nesse momento em que perdemos uma líder quilombola de uma forma brutal, é um modo de reafirmar que nós vamos resistir. Confirmamos o nosso compromisso com a ancestralidade. Seguiremos resistindo até que os dias melhores cheguem e a forma como nos ligamos com o que acreditamos seja a nossa força”, destacou.

Antes de iniciar a sessão, os presentes mantiveram um minuto de silêncio em memória de mãe Bernardete, assassinada a tiros na última quinta-feira (17). A cerimônia seguiu com as falas de pessoas que contribuíram para a resistência do terreiro Ilê Asè Kale Bokun, ao longo dos seus 125 anos, e a apresentação de vídeos que contavam parte dessa história.

Nas palavras da yalorixá Vânia, terreiro não se funda, se planta. O Ilê Asè Kale Bokun foi plantado no bairro de Plataforma, pelo avô dela, o babalorixá Severiano Santana Porto, de Logun Edé. O líder religioso foi iniciado pela tia dele, na casa de axé da família, no bairro da Ribeira. Após a morte da mãe de santo, babalorixá Severiano atravessou o mar e plantou o Ilê Aşé Kalé Bokùn do outro lado da cidade.

A proximidade com as águas aponta que o povo do Ilê Asè Kale Bokun descende da nação Ijexá. O termo é o mesmo que ‘nação do povo das águas', diretamente ligada à origem da festa que celebra Iemanjá, rainha das águas, no dia 2 de fevereiro, segundo conta o professor e babalorişá Vilson Caetano. Sua pesquisa sobre o povo Ijexá resultou no livro “Ijexá, o povo das águas”, que contribuiu para o tombamento do terreiro, em 2019.

“Eu considero essa pesquisa um dos meus trabalhos mais importantes. A minha alegria é baseada no encontro da tradição oral com o que a história aponta. Cada vez que a gente vem na Câmara Municipal é uma alegria, porque passa um filme pela nossa cabeça e a certeza de que toda luta é válida”, afirma o babalorixá.

O tombamento do terreiro foi oficializado pela FGM, por meio da Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro Ameríndia (AFA), apoiado nos registros do babalorixá Vilson, que descrevem as tradições do local. Entre eles, os rituais que exaltam o poder ancestral feminino, fontes e folhas consideradas sagradas, usadas no culto a Orixá.

Na época, Fernando Guerreiro já estava na gestão da FGM e dirigiu o processo de tombamento. “É uma alegria acompanhar mais um passo na preservação do terreiro, estando ao lado de tantas pessoas que me acompanharam nessa missão”, celebrou o gestor.

*Com orientação da subchefe de reportagem Monique Lôbo