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Maysa Polcri
Publicado em 3 de novembro de 2023 às 17:01
Uma extensão da Faculdade de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia (Ufba) entre as décadas de 1950 e 1960. É assim que o ateliê do ceramista alemão Udo Knoff (1912-1994), em Brotas, pode ser descrito. O espaço reuniu diversos artistas para oficinas e era onde Udo, na época professor da Ufba, desenvolvia a produção artesanal de azulejos pintados - uma novidade para a época. O pouco que restava da casa foi demolido para dar lugar a um estacionamento. Enquanto isso, uma equipe do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac) corre contra o tempo para salvar parte do acervo de valor inestimável. >
A degradação do histórico ateliê, localizado na Avenida Dom João VI, número 411, foi intensificada em 2019, depois do falecimento do genro de Udo Knoff. Ele era o responsável pelo espaço e dava seguimento ao ofício da azulejaria iniciado pelo alemão. Casado com a artista plástica Ivotici Becker, Udo Knoff se mudou para Salvador no início da década de 1950, ao se apaixonar pela cidade depois de uma exposição realizada na Galeria Oxumaré. >
Depois da morte do genro, a família de Udo intensificou a venda de peças do acervo, tornando, aos poucos, o ateliê irreconhecível. Eliana Mello, coordenadora executiva do Projeto SOS Azulejo Brasil, esteve diversas vezes no imóvel e comprou o que pôde quando se deu conta de que as peças tomariam rumos inadequados. “A última vez que eu estive lá, em 2022, foi um desespero. Catei vidros de pigmentos no chão, azulejos emoldurados, anotações, telas”, relembra.>
Antes disso, Eliana Mello frequentou o ateliê outras vezes, mas para fins de pesquisa. Há 12 anos ela se dedica ao estudo da azulejaria contemporânea brasileira, tema de seu doutorado no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Ufba. Ela conta que chegou a comprar lotes de 20 azulejos por R$ 800. Quem tinha interesse conseguia comprar cada peça por cerca de R$ 15. >
Em agosto de 2021, o Ipac, já ciente de que o terreno seria vendido, enviou uma equipe especializada para resgatar parte do acervo. Fizeram parte do grupo a pesquisadora Eliana e Renata Alencar, coordenadora do Museu Udo Knoff de Azulejaria e Cerâmica, localizado no Pelourinho. Na ocasião, azulejos inteiros, fragmentos, potes de pigmentos e telas de serigrafia foram resgatados em meio às ruínas da casa. >
Na terça-feira (31), o Ipac tomou conhecimento do início da obra que vai transformar o local em um estacionamento de uma rede de supermercados. Foi então que, mais uma vez, uma equipe de 15 pessoas formada por museólogos e restauradores se deslocou para Brotas. O dono do terreno autorizou o grupo a resgatar o que fosse possível e o trabalho seguirá durante toda a próxima semana, sem previsão para terminar. >
“Estamos retirando lentamente os azulejos remanescentes que estão nas paredes. O que a gente ainda puder salvar será levado para o museu. Nosso trabalho é proteger o patrimônio de Udo, que produziu a azulejaria contemporânea da Bahia no ateliê”, explica Renata Alencar, coordenadora do museu. >
A reportagem esteve no local, mas não foi autorizada a entrar no terreno que um dia abrigou o ateliê do ceramista. Do lado de fora, é preciso um olhar atento para enxergar os azulejos pintados na fachada, que foi parcialmente escondida por adesivos de campanhas políticas. Apesar de a casa ter sido completamente demolida, o muro da frente e uma parede lateral ainda guardam parte do acervo do alemão. >
A maior parte, no entanto, foi perdida com o passar dos anos. “Não sei se conseguimos encontrar 1% ou 10% do acervo porque não sabemos o que tinha ao total. Com certeza muitas peças de valor inestimável foram perdidas porque não temos um acervo desse em nenhum outro lugar do mundo”, afirma Luciana Mandelli, diretora geral do Ipac. >
“Udo Knoff representa o início da azulejaria autoral da Bahia. Foi do ateliê dele que saíram, feitos a mão, os azulejos que fizeram parte da verticalização da Barra e de outros bairros nobres”, diz a pesquisadora Eliana Mello, do Projeto SOS Azulejo. Hoje, na cidade, os azulejos que passaram pelas mãos de Udo podem ser encontrados na Casa do Rio Vermelho, onde Jorge Amado morou, no Zoológico, na sede do Banco do Brasil, localizada no Comércio, entre outros locais. >
"É impossível falar da arte moderna na Bahia nas décadas de 50, 60 e 70, sem falar de Udo Knoff. Muitas vezes as pessoas dizem que o azulejo é de Carybé, mas não é apenas de Carybé. Foi Udo quem cuidou, artisticamente, da pintura e do cozimento das peças cerâmicas que materializaram o desenho realizado por Carybé”, explica Eliana Mello. Esse é o caso dos icônicos azulejos de cores branca e azul que estão espalhados na Casa do Rio Vermelho. "A azulejaria é uma arte coletiva e isso a torna mais encantadora", completa a pesquisadora. >
Apesar de ter sido professor da Ufba durante 12 anos, Udo Knoff não se aposentou pela universidade. Animado com o sucesso da venda dos azulejos para famílias ricas da cidade, ele acreditou que o dinheiro “extra” não seria necessário. Quando as fábricas passaram a realizar o trabalho que antes só era feito no ateliê, Udo viu os clientes, aos poucos, desaparecerem. >
“Ele morreu com muito pouco dinheiro e dizia que seu maior arrependimento era não ter se aposentado como professor”, diz Renata Alencar. A luta dos restauradores é para garantir que o que sobrou do ateliê seja preservado, estudado e exposto no museu junto com outras peças de autoria do ceramista alemão que adotou a Bahia como se fosse sua terra natal.>