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Doador de sêmen gerou quase 200 filhos em 14 países e espalhou mutação ligada a câncer agressivo

Investigação mostra como brechas regulatórias permitiram a distribuição internacional de um doador com mutação no gene TP53

  • Foto do(a) author(a) Carol Neves
  • Carol Neves

Publicado em 11 de dezembro de 2025 às 07:57

Doador de sêmen espalhou mutação
Doador de sêmen espalhou mutação Crédito: Shutterstock

A revelação de que um único doador de sêmen gerou quase 200 crianças em diferentes países empurrou a Europa para um esforço emergencial: identificar todas as famílias afetadas, garantir acesso a protocolos oncológicos preventivos e revisar regras que permitiram que o caso avançasse por quase duas décadas sem controle. A situação, apontam autoridades consultadas pela EBU Investigative Journalism Network, escancara que a falta de integração entre bancos de sêmen, clínicas e autoridades sanitárias não é apenas uma falha administrativa - mas um risco real para a saúde pública e para futuras gerações.

O episódio expôs brechas profundas em um setor bilionário e fragmentado, que movimenta cerca de R$ 285 bilhões (€ 45 bilhões) em todo o mundo. Na Europa, cada país estabelece seus próprios limites de uso para doadores, mas não existe um teto internacional que impeça que o mesmo material circule por diferentes fronteiras. A União Europeia prevê novas normas em 2027, com registros interoperáveis e mais completos. Ainda assim, elas não incluem um limite único de nascimentos por doador, algo defendido por especialistas e autoridades que pedem a criação de um cadastro europeu integrado.

Uma mutação com impacto geracional

O gene TP53, afetado no caso, atua como uma espécie de freio biológico, impedindo que células defeituosas se multipliquem. A mutação reduz essa barreira natural e aumenta o risco de diversos tumores agressivos — inclusive na infância. Crianças concebidas com os gametas alterados podem desenvolver câncer nos primeiros anos de vida, apresentar múltiplos tumores simultâneos ou transmitir a mutação adiante.

Houve relatos de mortes precoces, diagnósticos em série e casos envolvendo irmãos concebidos em clínicas diferentes, mas no mesmo período. Equipes especializadas em síndromes hereditárias reforçam que localizar todas as famílias é crucial para iniciar rastreamento precoce, com exames periódicos e monitoramento contínuo.

Avisos tardios e falhas de registro

Embora o alerta oficial só tenha sido emitido em novembro de 2023, quando a European Sperm Bank confirmou a mutação em amostras armazenadas e bloqueou o doador, muitas famílias não foram notificadas de imediato. A comunicação seguiu pelo Rapid Alert System for Human Tissues and Cells, mas clínicas relataram perda de dados durante migrações de sistemas. Em alguns casos, pais descobriram o risco apenas após encontrarem outras famílias em grupos informais nas redes sociais.

A Autoridade Dinamarquesa de Segurança do Paciente admite que parte das famílias permanece sem informação — o que significa crianças ainda sem acompanhamento médico adequado.

Circulação em larga escala e ausência de controle

Documentos analisados pela EBU mostram que o material do doador circulou de forma atípica:

Dinamarca: 99 crianças - dobro do limite sugerido pelas autoridades.

Bélgica: 53 nascidos - quase dez vezes o teto legal.

Espanha: 35 - apesar de o país permitir apenas seis nascimentos por doador.

Alemanha, Grécia e Suécia: uso confirmado, com casos de crianças afetadas.

Irlanda, Polônia, Albânia e Kosovo: houve envios, mas sem registros de nascimentos.

A investigação também apontou a influência do turismo reprodutivo: pacientes viajavam para fazer tratamento fora de seus países, dificultando o rastreamento. Como cada clínica monitora apenas a própria demanda, não havia consolidação de dados — o que permitiu que a distribuição se estendesse por 17 anos sem detecção.

A European Sperm Bank reconheceu que os limites foram ultrapassados e atribuiu o problema à falta de informações enviadas por clínicas, falhas de controle e à circulação internacional de pacientes.

A mutação invisível nos exames

O doador, cadastrado como “Doador 7069” ou “Kjeld”, passou pelos testes então exigidos. Porém, cerca de 20% de seus espermatozoides carregavam uma mutação inédita no TP53, associada à síndrome de Li-Fraumeni. Como a alteração estava restrita aos gametas — um caso de mosaicismo gonadal — ela não aparecia em exames convencionais, e o doador não apresentava sinais clínicos da síndrome.

Crianças concebidas com esses gametas podem ter herdado a mutação e, potencialmente, repassá-la às próximas gerações.

O que é a síndrome de Li-Fraumeni

A síndrome de Li-Fraumeni (LFS) é uma condição genética rara ligada a alterações no gene TP53, responsável por regular a divisão celular e corrigir danos no DNA. Quando esse mecanismo falha, o risco de tumores aumenta drasticamente, com maior incidência de sarcomas, tumores cerebrais, leucemias e câncer de mama precoce. Pode ser herdada de um dos pais ou surgir como mutação nova.

O acompanhamento de famílias com a mutação inclui ressonâncias, ultrassons, avaliações frequentes e vigilância contínua — muitas vezes ao longo de toda a vida - para identificar tumores ainda em estágio inicial.

A investigação

O caso foi revelado pela EBU Investigative Journalism Network, ligada à European Broadcasting Union, que identificou que o sêmen do doador dinamarquês foi usado em 67 clínicas, 14 países, durante 17 anos, gerando pelo menos 197 crianças - número que pode ser ainda maior. Trata-se de um evento sem precedentes na reprodução assistida e que ultrapassou limites nacionais em vários países.