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Da Redação
Publicado em 3 de agosto de 2017 às 15:54
- Atualizado há 2 anos
O filme Gattaca, no Brasil traduzido como Experiência Genética (1997, Andrew Niccol), completa 20 anos agora em 2017. Mas, a realidade exibida na tela, o uso de técnicas de manipulação do DNA para aperfeiçoamento da raça humana, já não é coisa de ficção científica. Embora no filme a ciência seja usada de uma forma negativa e racista, para estabelecer hierarquias entre as pessoas em uma sociedade distópica (aquela que oferece condições de extrema opressão para os cidadãos); na vida real, a técnica de edição genética batizada de Crispr tem, na teoria, ao menos, finalidades bem mais nobres. Cientistas americanos anunciaram, na quarta-feira (02), na revista Nature, uma das mais importantes publicações do mundo sobre ciências, que a Crispr foi utilizada pela primeira vez com sucesso para alterar genes defeituosos em embriões humanos. Um grupo de pesquisadores dos Estados Unidos, China e Coreia do Sul conseguiu modificar o genoma de um embrião e impedir a mutação que, no futuro, facilitaria o surgimento de problemas cardíacos. Ainda não existe prazo para a Crispr passar a fazer parte da rotina dos consultórios ou mesmo dos laboratórios que já realizam outros tipos de testes genéticos.A revelação abre precendentes inimagináveis no que se refere ao tratamento de doenças genéticas. Segundo os autores do estudo, a técnica, além de precisa e segura, tem alto índice de eficiência na correção de disfunções transmitidas hereditariamente.Tema delicado Os pesquisadores, além de verificarem se a técnica é eficiente em outros problemas de saúde além daqueles que afetam o coração, precisarão responder às questões legais de segurança e bioética inerentes à manipulação de embriões humanos.Trata-se de um tema ainda delicado para a comunidade científica internacional, mas que tem suscitado discussões entre pesquisadores, com argumentos contra e a favor.Contra, pesam os riscos das técnicas de manipulação genética serem usadas para os mesmos fins escusos mostrados nos filmes de ficção. Quem é contra, teme que esse recurso acabe criando demandas de pais e mães ansiosos por “configurar” a cor dos olhos, da pele, a força muscular e até a inteligência dos futuros filhos, entre outras características.Já os discursos a favor defendem a possibilidade da Crispr atuar na prevenção de diversas doenças que vitimam milhares de pessoas e para as quais ainda não existe cura.Bactérias e tesouras A Crispr é um mecanismo de defesa encontrado em bactérias. Desde os anos 1980, cientistas observaram que alguns genomas bacterianos possuíam um padrão diferente, formado por uma sequência de DNA que podia se repetir diversas vezes, com sequências únicas intercaladas entre as repetições.O fenômeno foi chamado de Agrupados de Curtas Repetições Palindrômicas Regularmente Interespaçadas. Para facilitar, esse nome quilométrico foi reduzido à sigla Crispr, em inglês.A técnica, em uma explicação simplista, funciona igual a um editor de textos ou a uma tesoura molecular. Ou seja, no editor de textos, o autor pode cortar as partes que não servem e substituir por outras. Na Crispr, as partes doentes do genoma podem ser cortadas e substituídas por trechos de DNA saudável.Em 2015, a Academia Nacional de Ciências (NAS) americana considerou irresponsável a utilização da Crispr para alterar embriões com fins terapêuticos. Dois anos depois, a mesma NAS defende que a técnica “pode representar uma revolução na batalha contra doenças graves”.Chineses foram pioneiros Os cientistas chineses foram os primeiros a utilizarem a técnica de edição genética Crispr em seres humanos. A pesquisa chinesa, porém, não utilizou embriões e sim uma pessoa adulta e portadora de câncer de pulmão.Em outubro do ano passado, pesquisadores da universidade chinesa de Sichuan aplicaram células de defesa com o DNA modificado e editado pela técnica em um paciente internado com um tumor agressivo nos pulmões. A esperança dos cientistas era que as sequências de genes saudáveis pudessem combater o avanço do câncer, aumentando a sobrevida do paciente.Os primeiros resultados da pesquisa também foram publicados na revista Nature e o oncologista chefe responsável pelo estudo afirmou à publicação que a primeira etapa do tratamento ocorreu bem e que o paciente deverá receber novas injeções.Ao todo, os pesquisadores planejam tratar outros dez doentes. O monitoramento dos efeitos colaterais ocorrerá durante seis meses e cada paciente receberá, em média, de duas a quatro injeções.No tratamento do tumor, os cientistas retiraram do sangue dos pacientes, células defeituosas e desligaram o gene com problemas utilizando a 'tesoura molecular'.O trabalho foi feito por meio de uma enzima que faz um corte no DNA. Como guia, os cientistas utilizaram um trecho de RNA, o ácido ribonucléico, molécula que é a responsável por fazer a síntese de proteína das células do organismo.Sucesso contra o HIVPesquisadores das universidades de Temple e de Pittisburgh, ambas nos Estados Unidos, também obtiveram sucesso ao usar a técnica de edição genética com a enzima Crispr para eliminar o vírus HIV, causador da Aids, em camundongos infectados. A pesquisa foi divulgada no periódico Molecular Therapy, em maio.Primeiro, os cientistas inativaram o vírus da Aids em cobaias transgênicas e conseguiram reduzir de 60 a 95% do RNA viral. Depois foi feito um teste com um EcoHIV, que nos camundongos equivale ao HIV que atinge humanos. Nesse caso, a taxa de sucesso subiu para 96%.A última etapa consistiu na utilização de roedores que receberam implantes de células do sistema imunológico dos humanos, que é onde o vírus da Aids ataca, deixando os pacientes suscetíveis a adquirir infecções.Mais uma vez, utilizando a Crispr, os cientistas foram bem sucedidos ao extrair o EcoHIV que havia infectado as células imunes de seres humanos implantadas nos ratos.A pesquisa com o HIV ainda não avançou para a aplicação em portadores do vírus da Aids. No caso da pesquisa com os embriões humanos divulgada ontem, os cientistas não utilizaram o recurso em pessoas, mas fertilizaram óvulos de 12 mulheres com espermatozóides de homens que sofriam de cardiomiopatia hipertrófica, doença que dificulta o bombeamento do sangue pelo coração, levando à insuficiência cardíaca (quando o coração não consegue trabalhar direito).O problema acontece devido a uma mutação no gene MYBPC3. Para tratar os embriões, os pesquisadores utilizaram a enzima Crispr como tesoura molecular e cortaram o trecho do DNA que continha a mutação. Depois a substituíram por uma sequência sintética saudável.>