2020 é o pior dos anos

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  • Paulo Sales

Publicado em 14 de dezembro de 2020 às 09:10

- Atualizado há um ano

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Um dos registros mais pungentes do fotógrafo húngaro Robert Capa é o de um soldado norte-americano morto por franco-atiradores alemães em Leipzig, no dia 18 de abril de 1945. Pungente sobretudo por um detalhe: apenas 19 dias depois, no dia 7 de maio, a Alemanha se renderia aos Aliados, pondo fim ao conflito no front ocidental da Segunda Guerra Mundial. Observo a foto. Capa capturou a cena e a eternizou quase imediatamente após o tiro que matou o soldado. Vemos que ele está caído na varanda de uma casa, o sangue escorrendo.

A cadeira em primeiro plano, dentro da casa, e as árvores lá fora provocam uma insólita impressão de normalidade, como se não houvesse mais guerra e a figura inerte de uniforme não coubesse ali, naquela placidez comum a tempos de paz. Há também uma sensação de profundo desamparo. O tiro certeiro negou-lhe a vida quando faltava tão pouco. Mais alguns dias e ele voltaria para casa, reencontraria a família, levaria uma vida comum – dentro do possível, é claro, já que ninguém prossegue incólume depois de uma guerra. Qualquer guerra.

Hoje, como o soldado sem nome, bravos combatentes caem por terra no mundo todo. A guerra é de outra natureza e está a poucos dias do armistício (ou semanas, ou meses, dependendo de onde se desenrola a batalha). No dia em que escrevo, mais de 3.000 pessoas morreram apenas nos Estados Unidos e outras 800 no Brasil. Na Europa são outros tantos. Homens, mulheres, velhos, jovens. São, em quase sua totalidade, civis. Não estavam devidamente preparados para o que iriam enfrentar. Algo de muito vulnerável em seus corpos fez com que deixassem o campo de batalha dentro de um caixão sem bandeiras.

As diferentes vacinas que agora se aproximam da aplicação em massa vão salvar milhares de pessoas. No Reino Unido, elas já são uma realidade. Provavelmente será assim também em outros países francamente comprometidos em poupar seu povo do sofrimento. As trincheiras dos hospitais vão se esvaziar, deixando alívio, alegria e a sensação do dever cumprido, mas também terra arrasada, desnorteio e saudade. Parafraseando T.S. Eliot, 2020 é o pior dos anos. Mas para nós, brasileiros, ele não está acabando. É um moto perpétuo sempre girando e voltando ao início. Viveremos ainda um longo e arrastado período do mais puro enfado e da mais genuína desesperança. Haja estoicismo e resignação para enfrentá-lo.

Aqui a guerra permanece à toda, levada a cabo por um Hitler ainda mais demencial e tão abjeto quanto aquele que pôs fogo no mundo (este, em sua insignificância, põe fogo apenas no Brasil). Tragédia se repetindo como farsa. Grotesca, infindável, como um filme ruim num cinema decadente, sem ar-condicionado e com mau cheiro de mofo e fezes de rato nos cantos. Somos cobaias de um experimento que não deu certo, nem nunca dará. E só nos resta tentar desviar das balas de um franco-atirador impiedoso.

É um cenário tão desolador que me faz lembrar dos versos de Bertolt Brecht no poema Os Deslembrados. Brecht viveu tempos duros, e sabia do que estava falando: “Eles vivem e morrem por aí /Numa estrangeira viela /A vida com violência os atropela /E se põe a fugir. /Viveram e morreram e lutaram duro /E criaram suas crianças /E aí na mais distante deslembrança /Terminam seu percurso.”