2021 na rede

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  • Nelson Cadena

Publicado em 7 de janeiro de 2021 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Dois mil e vinte e um me surpreendeu na rede, balançando, um ócio providencial que não tem nada de extraordinário; desde que o mundo é mundo, a rede talvez seja o único objeto da casa que nos induz a refletir e cada vez mais tendo a assumir esse estado de espírito. Se é verdade que Deus criou o universo em sete dias, qualquer que seja a dimensão dessa façanha e do Deus abstrato que tenhamos em mente, com certeza o fez, e estou convencido disso, se balançando numa rede.

Milhares de anos novos não conseguiram tirar o protagonismo de uma rede, objeto tão primitivo quanto versátil, confeccionado desde sempre com fibras de árvores, do sisal, ou, com o manejo habilidoso do fruto do algodoeiro; não importa a linhagem, nada irá alterar o fato de que somente uma rede nos induz a refletir, diferente de um sofá que, quando Freud o rebaixou a condição de divã, o sentenciou a ser um objeto, não de reflexão, mas de confissão e consentimento. E não devo falar da cama, onde nada nos induz a refletir, no máximo uma inflexão onírica com a inevitável consequência de o sonho virar pó, ao despertar.

Noé não cometeria a imprudência de passar 40 dias cheirando cocô de bichos sem ter uma rede para se balançar e refletir sobre a provação do diluvio como nos ensinou a Bíblia, se esse era o propósito, e somente na rede acharia a inspiração para escolher o pombo espião que deveria ir e voltar com a boa nova do fim das chuvas. Sem a intenção de imitar o patriarca, foi numa rede que descobri o Brasil, navegando pelo Solimões, no distante ano de 1973; sem um pombo espião que pudesse me alertar sobre o futuro, e de nada valeria diante da determinação de um adolescente que pretendia reinventar a vida a partir das coisas simples, assim escrevi num caderno, com tintas carregadas de emoção.

Ter relegado a rede a objeto de decoração, arrumo de varanda e símbolo de lazer, foi um dos imperdoáveis erros da sociedade urbana que tanto sabia do desatino cometido que a preservou enquanto objeto secundário. E se lhe tirou a sua função principal, não lhe extraiu a sua áurea de canção de ninar. A rede recria o ambiente do balanço de nossos primeiros momentos neste mundo, nos braços em concha de uma mãe afetuosa, ou de um berço que balança. E é por isso que nenhum outro lugar é mais recomendável e confortável para celebrar um ano novo e refletir sobre ele.

O ser humano desde sempre assimilou a rede como um objeto moldado às circunstâncias do início e do fim, da vida e da morte. Os nossos antepassados nasciam no mato e eram acalentados em uma rede. Mais tarde, ricos e pobres usufruíam de seu balanço em outros contextos; os primeiros eram transportados nelas por escravos; os sem lastro, ou sem liberdade, enrolados nelas: um pano mortuário por não ter o privilégio de possuir um ataúde e, nessa humilhante condição, desciam os sete palmos sobre a terra quando o coveiro, se de boa vontade, conferia a medida recomendada.

O alvorecer de Dois mil e vinte e um me trouxe reflexões, enquanto me balançava na rede, e admito, um sentimento de gratidão, primeiro por estar vivo, nestes tempos de pandemia, e gratidão também a Bolsonaro, cuja má criação me deu a noção de quanto bem criei os meus filhos, se não com o esmero que gostaria de ter tido, com o mínimo de respeito. Nenhum de meus cinco filhos é mau caráter, ou tem baixos instintos. Nenhum deles esbanja grosseria. E Bolsonaro, com a sua fé na sarjeta, valorou meu papel de pai, se alguma dívida pairava sobre isso. Sem desmerecer as mães que, no plano espiritual em que se encontram, já sabem que não pariram anomalias.

* Nelson Cadena é publicitário e jornalista, escreve às quintas-feiras.