A biblioteca dos livros invisíveis

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  • Paulo Sales

Publicado em 6 de dezembro de 2021 às 05:08

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Outro dia, um amigo me recomendou o filme O Mistério de Henri Pick, que vi ontem. É uma comédia despretensiosa sobre o universo literário francês, que se alicerça numa premissa curiosa: uma biblioteca que reúne em seu acervo obras rejeitadas pelas editoras. Estão lá estantes e mais estantes de originais nunca publicados, como um inusitado monumento ao fracasso. Numa dessas estantes é descoberta uma obra-prima que – ao ser publicada – torna-se um estrondoso sucesso editorial.

Enquanto assistia ao filme, pensei nos muitos autores que nunca tiveram a sorte de ter um livro publicado. Seja por falta de mérito próprio ou por um azar do destino: um original extraviado pelo correio, um bom editor em um dia ruim, um mau editor com tempo de sobra ou, quem sabe, certa incapacidade coletiva de vislumbrar uma obra revolucionária no momento em que ela nasce: aquele gênio que capta o espírito do seu tempo, muitas vezes antevendo o rumo que o mundo tomaria a partir dali. Aconteceu até com os maiores.

Ulisses, clássico maior de James Joyce, penou para chegar às livrarias. Era considerado gigantesco, experimental e obsceno. Graças à capacidade visionária de Sylvia Beach, sua primeira editora, foi publicado. Moby Dick (Herman Melville), Lolita (Vladimir Nabokov), O Grande Gatsby (F. Scott Fitzgerald) e até O caminho de Swann, primeiro volume da saga Em Busca do Tempo Perdido (Marcel Proust) também padeceram no purgatório antes de alcançarem a consagração.

Há ainda os casos de grandes escritores cujos livros viraram pó antes mesmo de serem enviados para apreciação. Quando era um jovem autor em busca de afirmação, Ernest Hemingway sofreu uma perda monumental. Tudo o que tinha escrito até então foi deixado inadvertidamente em um vagão de trem em Paris por sua mulher, que iria encontrá-lo na Suíça. Na mala perdida estavam todos os seus manuscritos: contos, esboços de romances, versos eventuais. Quem sabe até algum portento do nível de O Sol Também se Levanta, seu primeiro romance – este felizmente trazido à tona.

Como Hemingway, outros autores famosos tiveram trabalhos arruinados das mais variadas maneiras. Malcolm Lowry, de À Sombra do Vulcão, levou nove anos escrevendo um romance monumental, que acabou consumido pelas chamas que destruíram sua casa. Já Nicolai Gogol perdeu voluntariamente para o fogo o que seria a segunda parte do clássico Almas Mortas, lançando-a na lareira.

Para sorte da humanidade, uma das produções literárias fundamentais do século 20 escapou por pouco de virar cinzas. No caso, os livros de Franz Kafka, que antes de morrer pedira ao amigo Max Brod que os destruísse. Brod talvez seja o herói maior da história da literatura, e sua desobediência em nada diminui o respeito e a devoção ao autor de A Metamorfose.

Mas… e quanto àqueles que sequer tiveram o gostinho da glória, o breve prazer de roçar as asas na eternidade? Aqueles que guardam suas pequenas pepitas em gavetas anônimas, vendo envelhecer e amarelar o rebento tão acalentado? Aqueles que encerram suas ambições e aspirações em obras que nunca verão a luz? Vou mais longe: e quanto aos que sequer tiveram a oportunidade de criar seus livros? Os que morreram antes da conclusão ou mesmo antes da concepção do que poderiam ser marcos da literatura mundial.

Talvez algum judeu morto no Holocausto, alguma vítima de tuberculose no início do século passado, algum escravo condenado a penar numa lavoura enquanto a mente fervilhava. Imagino agora uma biblioteca formada por esses livros invisíveis. Estantes e mais estantes de obras

inexistentes, perdidas para sempre no éter. Gênios sem nome e sem reconhecimento, destruídos pela engrenagem de moer vidas chamada mundo.