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A cidade da morte

  • Foto do(a) author(a) Nelson Cadena
  • Nelson Cadena

Publicado em 20 de outubro de 2022 às 05:00

 - Atualizado há 2 anos

. Crédito: .

Ouvi dizer da lenda, e não era lenda de que, no Verão de antanho, cadáveres boiavam nas águas mornas, quase paradas, das praias de Kourou, cidade balneária da Guiana Francesa. Nenhum deles era “o afogado mais lindo do mundo” - bem servido pela natureza e admirado pelas mulheres do conto de Garcia Marques. Eram afogados feios, rudes, barba crescida, corpos tatuados e marcados por percevejos e carrapatos; alguns exibiam furos recentes na pele, bicadas dos albatrozes quando os corpos afluíam na areia, me disseram. Todos sabiam que se tratava de presidiários da Ilha do Diabo, em tentativa frustrada de fuga. Mais uma de quem arriscava a vida para driblar a morte em vida.

Diz a lenda e não era lenda, eu mesmo constatei, que Kourou foi construída a cidade e a base espacial - por sete mil operários, brasileiros e colombianos, recrutados na Amazônia. Muitos morreram na Base vitimados pelo paludismo e os costumeiros acidentes de trabalho. A maioria retornou a seus países de origem, outros ficaram na cidade prestando serviços braçais, ou foram residir em Caiena. Quando o comissário dos dentes de ouro (juro que eram todos forrados a ouro, os da frente com certeza) me chamou para me perguntar qual era a minha na cidade, na delegacia de Caiena, estranhei que os cartazes na parede eram impressos em português. Perguntei o porquê? A maioria dos presos são brasileiros, explicou.

Morei em Kourou em 1974, pouco mais de um mês, com Ângela, uma prostituta costarriquense que dividia comigo a cama, sem sexo, que ela era profissional, deixou isso bem claro numa afoita cruzada de perna de minha parte, e compartilhava a sua geladeira e suas desventuras, histórias de uma vida sofrida. O bairro das prostitutas latino-americanas era um amontoado de casas brancas, caiadas, de quarto e sala, uma ou outra com um arvoredo de rua na frente. O branco era a cor da cidade da morte, todas as construções, incluindo as repartições públicas, tudo branco. Dizia a lenda que foi um projeto inspirado em Brasília, cidade planejada com certeza, a julgar pela estética.

No mês em que residi em Kourou não se ouviam mais os relatos de afogados, era coisa de outros tempos, mas tinha um sobrevivente do cárcere, o dono de um bar, que dizia ter conhecido “Papillon”, personagem do romance de Henri Charière, ele próprio, o escritor, protagonista de uma fuga espetaculosa. Tinham sido companheiros de cela, na ”Île du Diable” que podia ser vista da praia e de seu bar, a duas léguas de distância se muito. Hoje a prisão - as ruínas - é um destino turístico. Os visitantes testemunham as marcas do que um dia foi considerada a mais cruel colônia penal do mundo.

O bar do ex-presidiário e sobrevivente da Ilha era o ponto de encontro dos legionários e das prostitutas latino-americanas quando os militares retornavam de seu treinamento animal, testes de esforço prolongado e de força para superar limites. Kourou era uma das bases de treinamento da Legião Estrangeira; homens brutos, de grosso trato, mercenários da França nas guerras pelo mundo afora. Ganhavam bem para alegria das meninas do bairro das prostitutas que, num fim de semana, faturavam uma boa quantia de francos. Dava para comer, pagar aluguel, comprar os perfumes e estojos de maquiagem de contrabando, roupas vistosas e as meias calças de furinhos da moda.

Se as madames usavam, porque não elas. A dona do principal bar-boite de Caiena usava uma loura alta de coxas grossas, minissaia indecente, que adentrava no espaço segurando pela coleira um cachorrão enfezado. Atrás dela o marido, um indonésio baixinho, jeito de corno - dizia a lenda.   Francês também é enxerido, numa mesa de bar já gosta de falar da vida dos outros.

*Nelson Cadena é publicitário, jornalista e escreve às quintas-feiras