A dança de Jodorowsky

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  • Da Redação

Publicado em 6 de dezembro de 2021 às 05:03

- Atualizado há um ano

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Bergman talvez inaugure, com Morangos Silvestres, em 1957, a fantasia autobiográfica surrealista no cinema. Seis anos depois, Fellini embarca na mesma viagem com seu 8¹/², e mergulha de vez dez anos depois, ao fazer seu Amarcord.

Três belíssimos filmes que se encontram nas listas dos cinéfilos de responsa, são também, além de grandes filmes, estradas que nos remetem ao nosso próprio passado, sempre distorcido, fantasiado, com dimensões confusas, cheiros, cores e sabores inventados.

Alejandro Jodorowsky misturou Arrabal com Buñuel, Fellini com Monicelli, Ionesco com Sade. A Montanha Sagrada e O Topo são referências da contracultura e do cinema surrealista, filmes repletos dessa mistura acima, com mais todo o misticismo que eclodiu no final dos anos 60. No entanto, Jodorowsky criou sua própria estética, muito particular, autoral, apesar de todas as referências e influências.

Assisti a A Dança da Realidade (2013), primeiramente, com um certo espanto. Como, em pleno século XXI, o cineasta faz um filme aparentemente tosco, mal-acabado em diversos aspectos? Quando o cinema nacional já consegue efeitos especiais e roteiros bem amarrados, aos moldes das fórmulas importadas, e a caretice transformou a arte numa loucura pasteurizada, num invólucro pop-comercial muito bem pensado para parecer transgressor aos que não suportariam a transgressão, Jodorowsky aparece com um filme datado, ultrapassado, repetindo fórmulas num maneirismo anacrônico.

Mesmo dando toda licença poética e com toda boa vontade (acreditem, vejo tudo torcendo para amar), vi os primeiros minutos do filme já calculando quanto eu teria que aturar de sua duração, para conseguir bravamente ir até o fim.

Numa sociedade onde três parágrafos já é textão, música com mais de três estrofes é letra gigante e coisas com mais de três minutos, não sendo série, são longas, o que menos temos nos proporcionado é mergulhar nalguma obra. A contemplação, entrega e deslocamento do real, atributos que fazem da Arte uma cura, como acredita o próprio artista, têm sido negligenciadas, marginalizadas e ignoradas.

Jodorowsky me deu um nó. Ao entrar no universo dele, aceitar as convenções e me entregar à fantasia do artista, fui tendo pequenos sobressaltos de alegria, percebendo todas as alegorias, metáforas e um profundo hino ao seu país, seus pais e sua infância de forma agridoce. O cineasta consegue tocar em praticamente todos os temas polêmicos; sexualidade, preconceito, política; nenhum personagem ou situação passa ileso à lente distorcida, profana e pervertida dele. 

É impossível contar uma história com a pretensão de ser a verdade. Sabedor disso, ele assume de vez a fantasia, e escancara uma visão da arte sem compromisso com a moral, a coerência, numa superexposição caricata do nosso ridículo cotidiano. E o tosco se faz poética. O caricato se torna essência. 

De repente, eu estava imerso num outro Chile, numa outra família Jodorowsky, e um universo novo se criava a partir das partículas de saudade pescadas pelo autor, universo criado numa explosão de cores que, como o passado, vai aos poucos se esmaecendo. “Recordações, nunca realidade”. Despedida, e a criança vê tudo perder a cor.

E, súbito, me vi às lágrimas na cena final do filme. O artista chileno acessou minha criança e minha própria fantasia, e me fez chorar de saudade, nostalgia, emoção, da sua que era minha história, que ele, sem vergonha e receio do tosco, do maluco, do estranho, do ridículo, transformou em poesia surrealista.