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Paulo Leandro
Publicado em 28 de setembro de 2019 às 05:00
- Atualizado há 2 anos
Lord Hume propõe pensar o tempo como afeto. Momentos marcantes vão além do cronômetro e passam a integrar uma dimensão especial, impossível de ser contida em uma data.>
Este sábado é um dia assim. 28 de setembro de 1979 é uma sexta-feira chuvosa sem fim. Nunca chegará o sábado para quem a viveu, seja rubro-negro, pela tristeza, ou tricolor, por tanta alegria.>
Era um tempo bom aquele de convívio pacífico entre os torcedores. Da Rua Campo do Selva, em Cosme de Farias, partia uma camionete com bahias e vitórias multiplicados às pencas na carroceria.>
Capitães de areia e filhos de família estruturada subiam juntos rumo ao destino Fonte Nova. Dava pra ir a pé também, mas a mistura, a resenha, a zoação em cima da camionete ajudava a criar um clima de pré-jogo.>
Naquela noite decisiva, estiou antes de a bola rolar, mas depois caiu aquela chuvinha fina, destas de encher rio. O Vitória lutava para interromper uma série de seis títulos do Bahia.>
Para quem foi criança rubro-negra naqueles anos 1970, a infância foi traumática. O pequeno torcedor comemorou com a família em 1972 e depois viu o mundo crescer sem alegria.>
O de 1973 era inaceitável perder, com um timaço reconhecido até hoje como um dos melhores do mundo. Basta recitar o poema do ataque: Osni, André e Mário Sérgio. Podia ter ficado a taça com o Atlético de Alagoinhas de Dendê.>
Em 1974, o Leão também rugia forte, não sei se foi neste ou no de 1975, o Bahia foi campeão com gol de Piolho, sempre troco estes anos. Em 1976, foi absurdo ganhar duas fases, com um time que tinha Fischer no comando do ataque, e depois entregar o caneco a Beijoca.>
1977 já não digo, nem 1978, mas em 1979 o Vitória estava forte, não era este o time de Sena? Quando tinha cobrança de falta, a torcida levantava em atitude contemplativa, certa da experiência estética da bola bem colocada no ângulo.>
Pois na noite seguinte ao caruru, comido de mão por sete crianças, em reverência aos ibeji, Cosme e Damião, a bola estava melada de quiabo, quando Fito chutou meio despretensioso do meio da rua e nosso quíper aceitou.>
O mesmo arqueiro tinha fechado no primeiro tempo, mas tem bolas enfeitiçadas, como a do gol de Raudinei, em 1994. Pode ver no YouTube o protagonismo da redonda ao quicar de pé em pé até o chute mortal, como se viva estivesse.>
Pois bem, hoje e amanhã e depois sempre será 28 de setembro de 1979, uma sexta-feira chuvosa, a bola de quiabo, escorregadia, brincando de enganar nosso porteiro, amaldiçoado desde então, como um delatado da lava-jato.>
O Ba-Vi contava com o luxo de ter os irmãos Zezé e Aymoré no comando dos quadros, como seu Biscoito gostava de dizer.>
O Vitória só viria a ser campeão no ano seguinte e naquele tempo se dava muito mais valor ao estadual, cheio de fases, turnos, clássicos e partidas boas de se ver contra os times menores e os do interior.>
Aquele bom convívio na camionete repetia-se no estádio, onde só se brigava a brinquedo, à base de ‘cachação’ ou ‘nescau tem gosto de festa’, quando um torcedor perturbado entrava no território inimigo.>
Fito depois viria a ser o treinador do Vitória no Brasileiro de 1993 e a criança tornou-se cronista esportivo e pesquisador de futebol, graças à temporalidade afetiva proposta por Lord Hume.>
Paulo Leandro é jornalista e professor Doutor em Cultura e Sociedade>