A ficção choca porque a realidade é pior

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  • Da Redação

Publicado em 26 de abril de 2022 às 05:00

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Sobreviver pode ser um ato de desobediência civil. Esta frase resume Medida Provisória, primeiro filme dirigido por Lázaro Ramos, baseado na peça Namíbia, Não! de Aldri Anunciação. A obra aborda um futuro não muito distante em que é instituído um autointitulado “programa de reparação” contra o racismo que primeiro estimula e depois obriga os negros do Brasil a migrarem para a África. É difícil saber se ela choca porque é muito real ou porque a realidade é muito mais violenta.

Na história, após muito esforço, os descendentes de escravizados estavam prestes a ser indenizados financeiramente pelo sofrimento dos antepassados. Surge então a nova legislação: Medida Provisória 1888 da ficção, cujo número sarcasticamente remete ao ano da lei áurea. Sempre que um grupo oprimido parece começar a se aproximar de diminuir a opressão que sofre, há um grande incômodo e a reação “generosa” contra os  “exageros identitários”. Também no filme os racistas incomodados bradam com firmeza que não são, nem jamais foram, racistas. 

 O desejo de branqueamento da população brasileira tem precedentes legais muito fortes. A Constituição de 1934, por exemplo, determinava que cabia à União, aos Estados e aos Municípios estimular a educação eugênica. Renato Kehl, fundador da Sociedade Eugênica de São Paulo nesta mesma época, defendia a segregação entre brancos e negros e a esterilização de todos os negros e indígenas. Outros eugenistas eram entusiastas da miscigenação, mas também a viam como forma de apagar traços genéticos de negros e indígenas. Todos foram erigidos a norma constitucional.

Programas de estímulo ou imposição da saída de pessoas pretas do Brasil com destino à África tampouco são fruto de criatividade exagerada dos artistas. Uma lei baiana de 1835 era mais cruel que a do filme. A lei nº 9, promulgada em 13 de maio, como se também fosse uma ironia intencional, determinava igualmente que todos africanos libertos ou escravos teriam que se mudar para qualquer país africano que fosse convencido pelo governo da província a recebê-lo. A dose adicional de crueldade é a seguinte:  ainda pagariam um imposto anual, enquanto não encontrado seu destino.

Hoje, não temos leis em vigor que falem sobre deportação compulsória, mas existe também a violência pura, simples e fatal. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, pessoas negras foram 76,2% das vítimas de assassinato em 2020 e 78,9% das de intervenções policiais. Isso pode ser visto na Bahia em diversos casos emblemáticos, como a chacina do Cabula, a Chacina da Gamboa ou o assassinato de Pedro Henrique, em Tucano.   Existe também a resistência. A Defensoria Pública propôs 13 medidas para redução da letalidade policial, como o uso de câmeras e a extinção de programas racistas e estigmatizadores como o “Baralho do Crime”. Segue aguardando resposta. Diversas lideranças populares e culturais baianas, incluindo artistas como Vovô do Ilê, João Jorge do Olodum e Dj Branco criaram uma Frente contra o Genocídio Negro e vêm tentando articular com a sociedade e entes públicos, formas de diminuir a violência e o racismo. As organizações dos movimentos negro e indígena são os “afrobunkers” dos nossos dias.

O filme de Lázaro Ramos não destaca a expressão genocídio, mas trata dele, no mesmo sentido que aqueles intelectuais e militantes lhe dão. Nenhum deles imagina que haja alguém rindo enquanto conta corpos negros mortos. Mas, todos sabem que esses corpos incomodam, que muitos se sentem mais felizes quando não os veem e que eles só tombam com tanta frequência porque há tolerância e indiferença por parte de autoridades e pessoas comuns que juram que jamais foram racistas. Por fim, se você procurava um motivo para ir ao cinema, encontrou. O filme é genial. A arte também pode ser um ato de desobediência civil.

Rafson Ximenes é defensor público-geral da Bahia