A Flipelô e a reelaboração da territorialidade (di-ver-gente) negra

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  • Da Redação

Publicado em 19 de agosto de 2019 às 14:00

- Atualizado há um ano

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Agosto da Literatura... Nos últimos dias, o Pelourinho foi palco de um dos eventos culturais mais importantes para o fortalecimento da cultura soteropolitana, comprovando que as nossas identidades culturais se (re)elaboram e se pautam para além da música de carnaval. Em sua terceira edição, a Festa Literária do Pelourinho foi um divisor de águas para as múltiplas visões que se tem do Centro Antigo enquanto espaço de produção e fruição cultural, de turismo, de lazer, de entretenimento e de gastronomia. Tendo a literatura como carro-chefe, a FLIPELÔ atraiu em seus cinco dias de eventos, dezenas de milhares de pessoas, dentre os moradores do próprio Centro, dos diversos bairros da cidade, bem como turistas de diversos cantos do Brasil e do Mundo. 

Em meio a uma programação intensa e extensa, para diversos públicos e variados gostos, eis que se destaca a Casa do Benin. Um dos espaços culturais mantido pela Fundação Gregório de Mattos (FGM), através da Gerência de Equipamentos Culturais, chega ao auge dos seus 31 anos de existência com muita vitalidade. Fundado originalmente para fortalecer e difundir os laços culturais estabelecidos entre Salvador e a África, o espaço possui arquitetura assinada por Lina Bo Bardi e um acervo precioso de peças trazidas por Pierre Verger em expedições realizadas à Costa do Benin. Está situada em um sobrado colonial, bem no coração do Centro Histórico, na divisa entre o Pelourinho e o Santo Antônio Além do Carmo, na passagem da Baixa dos Sapateiros para a Cidade Baixa, em um dos cantos de uma encruzilhada de seis pernas. Em meio a altos e baixos, a Casa do Benin foi reaberta em 2014, após uma breve reforma, e desde a primeira a primeira FLIPELÔ tem buscado se firmar dentro do evento enquanto espaço de valorização do legado literário afro-diaspórico.

Nessa terceira edição, momento em que a própria FLIPELÔ alcança patamares elevados de reconhecimento da população, de envolvimento com o comércio e residentes do centro antigo, a Casa do Benin, com sua ampla programação pautada na literatura “di-ver-gente” e literatura negra, sagrou-se como um dos espaços mais requisitados pelos participantes da Festa. Em quatro dias de evento, funcionando das 09 às 21h, mais de 7.500 pessoas visitaram o seu acervo permanente, circularam pela PeriFeirAfro, participaram das oficinas de etnogratronomia com Angélica Moreira, do Ajeum da Diáspora e de performance poética com Luiza Romão (SP), das rodas de conversa, dos saraus, performances, apresentações musicais, dentre outras atividades. Considerando esse montante de pessoas impactadas diretamente, o investimento feito pela FGM, Prefeitura de Salvador, para realização do evento não chegou a R$4 per capita. 

Foram mais de 200 profissionais envolvidos diretamente com a realização da programação da Casa do Benin na Flipelô, incluindo escritores, editores, poetas, cordelistas, performers, além de músicos, produtores, técnicos, mediadores, dentre outros profissionais do campo da cultura. O evento gerou ainda uma movimentação de mais de R$10.000,00 em venda de livros, artesanato, roupas, adereços, comidas e bebidas no mercado independente. Outros setores da economia da cultura também foram beneficiados gerando renda e postos de trabalho diretos e indireto, como é o caso dos fornecedores de infraestrutura – toldos e sonorização, transportes da equipe, dos participantes e dos materiais – táxis, ubers e carretos, fornecimento, e assim por diante. Para assegurar o êxito do evento, outros setores da Prefeitura também foram envolvidos como a SECIS, a SEMOP, a SEMOB, a Transalvador, a Limpurb e a Guarda Municipal. 

A imprensa chegou a destacar a Casa do Benin como o espaço mais negro da Flipelô. Ocupada por negros, por pessoas da periferia e divergentes de várias origens, de Salvador, de Cachoeira, de Saubara, de Curitiba, de Porto Alegre, da Guiné Bissau e de outros cantos do mundo, a Casa do Benin foi transforma da num verdadeiro gueto, como percebeu uma das pessoas que engrossou a plateia. É como se aquele espaço estivesse sido transformado em um território de desdiasporização, de convergência, de aglutinação de (re)união da negritude. O motivo disso se deve tanto pelos temas abordados nas rodas de conversa e seminários realizados, como: Criança negra e literatura infantil, Jogo de discursos na capoeira angola, Masculinidades negras, Modos de narrar a África, Go África – notícias de Maputo, Música e Poesia Negra; quanto pelos artistas e grupos que se apresentaram: Grupo Gangara, Nelson Maca e suas performances Tamborismo, Candomblacksia, Afro Power Trio, Luiza Romão (SP) e sua performance Sangria, VisiOOnárias, Bruna MC, Vera Lopes, Émile Lapa e muitos outros. E não podemos esquecer das comidas preparadas e servidas por Angélica Moreira e seu Ajeum da Diáspora encheram o espaço de cheiro e sabor. No sábado, teve moqueca de bacalhau com banana da terra e carne de fumeiro com feijão fradinho e pirão de leite, e no domingo, anduzada e quiabada de marisco. 

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Toda as atividades propostas, desde as visitas guiadas às rodas de conversa, das oficinas às apresentações artísticas tiveram grande procura. Embora todas as apresentações tenham sido bastante importantes para o fortalecimento da Casa do Benin enquanto território divergente e negro, merece destaque a performance Sangria, da paulista Luiza Romão que atraiu uma multidão que ecoou junto com a performer: “um tsunami somos, um tsunami somos, somos um tsunami e nenhuma onda conservadora irá nos aplacar”. Outro ápice foi a roda de conversa sobre os encruzilhamentos da poesia e da música negra com Mateus Aleluia e Mariella Santiago, na manhã do domingo. Em sua sabedoria, o remanescente dos Tincoãs emocionou a plateia lotada com suas palavras, olhar profundo e voz firme: “a cultura vem do cultuo, é no culto que cultivamos hábitos (...) nós é que temos moral, a natureza tem leis”, além de levantar um grande couro com a canção Gira.

A legitimação daquele espaço como uma territorialidade “di-ver-gente negra”, a partir da literatura e de suas transversalidades com outras linguagens artísticas e expressividades culturais, é um amuleto de proteção e combate ao racismo genocida, à intolerância religiosa, à escravidão intelectual, ao machismo tóxico, à lgbtifobia letal. Como bem lembrou o mestre tincoânico Mateus, ali estávamos entre nós, entre os nossos, e quando estamos juntos, é mais difícil de sermos alvo de predadores que nos cercam. E como bem dos diz a poesia da quebrada “o quilombo vem dizer, favela vem dizer, a rua vem dizer: é nós por nós” e foi isso que foi reafirmado na Casa do Benin na Flipelô. Aleluia, Amém, Axé, Ngunzo, Assim seja. Assim será!

 Chicco Assis é mestre em Cultura e Sociedade pelo Pós-Cultura da UFBA, gerente de equipamentos culturais da FGM e idealizador, curador e produtor da programação da Casa do Benin na Flipelô.

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