A força de mil cavalos sobre meu crânio

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  • Kátia Borges

Publicado em 25 de maio de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Naquela época, Clarice, eu vivia lendo e relendo seu livro com um ódio imenso. Um ódio tão denso quanto aquele que precede uma explosão de lágrimas. Sabe quando se quer chorar em casa e não se consegue e de repente o choro explode na rua e se quer parar e não se consegue?

Eu havia passado da fase das músicas, de ouvir compulsivamente todas aquelas músicas, para a leitura das histórias que você criava. Eu queria estar perto de algum jeito e me odiava por isso de longe. Eu queria desamar aquilo que você era para mim, tão intangível e incompleta, que até promessa fiz. Sim, eu iria até um tal santuário em outro país, me postar ao lado do corpo incorrupto de uma tal santa, eu acenderia uma vela e tal, tudo para te esquecer completamente. 

Enquanto não se dava esse milagre, vivia relendo o seu livro com um ódio imenso. E esse ódio crescia à leitura de cada frase. Seria bem mais fácil se eu não amasse o modo como você escrevia. Ah, mas, ora, diabos. Eu pedia a Deus que me mostrasse algum traço de mediocridade. Ali em alguma parte haveria por certo um engano. Eu só precisava ter calma e logo acharia um defeito grave que justificasse todo o meu desprezo. 

Mas eu te amava tanto que talvez relevasse. E te amava de graça desde antes, e nunca te disse. Porque o que eu sentia nunca coube em palavra alguma. Se tentasse explicar, saia um disparate. Era largo como uma avenida de carros. Era estreito como um córrego numa pequena cidade. Cedo, desisti. E talvez durasse menos ainda se contasse. Ou, pior, talvez você me olhasse e risse. 

Como explicar, sem parecer um louco, que o tempo parou na noite em que nos vimos por alguns instantes e quando prosseguiu, meses depois, achei que nada o deteria? A força de mil cavalos sobre meu crânio. Sabe quando se quer chorar e não se consegue, e então não se consegue parar quando o choro explode? 

No dia em que me despedi com alguma dignidade, dormi tão calmo. Amanheci sorrindo, agarrado àquele resto de orgulho. Me mantive de pé, pensei, tão raso, enquanto a água subia e me envolvia o corpo. Feito um peixe, feliz em seu aquário, fiz compras no mercado, fui ao shopping. Mas então o céu azul de outra cidade puxou o ralo e fui esvaziando lentamente até sentir-me seco e nu, um homem, e então voltar-me inteiro ao que era antes. 

Descobri, espantado, que aquele lugar já não existia. Algum autor malvado havia apagado meu passado de pirraça e posto em seu lugar páginas e mais páginas do seu livro, Clarice, que agora eu lia.