A Gaiola, de José Revueltas

Livro de autor mexicano inédito no Brasil conta a história do confinamento de três homens em uma cela suspensa

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  • Da Redação

Publicado em 1 de junho de 2020 às 18:00

- Atualizado há um ano

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Reprodução Basta ler a primeira palavra de “A Gaiola” para que o leitor se sinta imediatamente transformado no olho de Albino ou de Polonio ou de Caralho, a cabeça guilhotinada sobre a bandeja, uma das tantas comparações sugeridas pelo mexicano José Revueltas (1914-1976) em sua novela (ou conto: tal discriminação não tem qualquer importância para o leitor) publicada agora pela Editora 34, com tradução de Samuel Titan Jr. A cabeça sobre a bandeja é a cabeça de um dos três presos da história, que, a fim de olhar o que se passa do lado de fora (para ser exato, a fim de saber se a mãe de um dos presos está chegando), precisa levar os olhos para além do postigo da cela, suspensa feito uma gaiola. O autor é quem melhor pode descrever o ato:

“Introduzir – ou tirar – a cabeça desse retângulo de ferro, dessa guilhotina, transportar-se, transportar o crânio com todas as suas partes, a nuca, a testa, o nariz, as orelhas, para o mundo exterior à cela, pôr o crânio ali como se fosse a cabeça de um justiçado, irreal à força de ser viva, requeria um empenho cuidadoso, minucioso, do mesmo modo como se extrai um feto das entranhas maternas, um tenaz e deliberado autoparir-se com fórceps que terminava arrancando mechas de cabelo e arranhando a pele.”

A novela de Revueltas, autor mexicano que se mantinha estranhamente inédito por aqui, e que passou pela prisão mais de uma vez por conta de seu ativismo político, toma o leitor de assalto e o leva até a última palavra sem deixar qualquer possibilidade de pausa, um banho de sol ou algo parecido. Não há parágrafo em suas 51 páginas oclusivas, e o relato é escrito com a fúria de um Fernando Vallejo, escritor colombiano naturalizado mexicano, em sua obra-prima O desfiladeiro. Entende-se muito de sua estrutura quando se sabe que a novela foi escrita na prisão preventiva da Cidade do México, no ano de 1969.

Três homens estão presos em uma cela minúscula e suspensa de uma prisão coalhada de vigias. Um deles chama a atenção do leitor por sua condição miserável: Caralho. Sim, é esse mesmo o nome, ou apelido do detento: seus “colegas” de cela o apelidaram desse modo porque o sujeito não tinha serventia alguma, “não servia para caralho nenhum”, visto que é aleijado, não enxerga de um olho, tem feridas abertas na nuca e apenas um pulmão funcionando a contento (“O caralho suscitava uma misericórdia cheia de repugnância e cólera.”). Entretanto, é dele a mãe que os três esperam desesperadamente, a mãe que tem o poder de levar a única saída possível aos três presos da gaiola, uma liberdade temporária: o “anjo branco”, uma droga que o autor não denomina, não especifica, assim como nada diz sobre o motivo pelo qual estão presos e quando sairão.

A jornada do herói é basicamente a espera, ansiosa, pela chegada da mãe de Caralho, uma senhora de idade avançada que, exatamente por conta da idade, talvez não seja revistada em suas partes íntimas, podendo, portanto, importar o “anjo branco”. Há ainda as namoradas de Albino e Polonio, respectivamente Mecha e Chata, mas essas personagens são, a rigor, pedestais para a mãe de Caralho, e, aqui e ali, contribuem com alguma lascívia ao relato.  Acontece que o plot é o que menos conta em um livro cujo protagonismo fica a cargo da linguagem, do “como” e não do “o quê”, o modo como uma história tão simples é contada.

Esse Kafka barroco é apenas um aperitivo na relativamente extensa obra de um autor que recebeu o seguinte elogio de Octavio Paz, Prêmio Nobel de Literatura de 1990:

“José Revueltas é um dos melhores autores de minha geração e um dos homens mais puros do México”.

“A Gaiola” é um excelente – e perigoso – começo.

*Henrique Wagner é poeta e crítico literário, autor de “A história decalcada”.

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