‘A gente aprende a não respirar pra não incomodar, não sair do modelo’

Leia entrevista com Aidda Pustilnik, psicóloga que trabalha com a respiração

  • Foto do(a) author(a) Fernanda Santana
  • Fernanda Santana

Publicado em 11 de julho de 2021 às 11:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Divulgação/Youtube

No fim das respostas, Aidda Pustinilk, 84, antes de ouvir a próxima pergunta, costuma questionar: “Ficou claro?”. Ela entende que nós, embora só conheçamos a vida porque o ar visita os pulmões, não respiramos de verdade. Por isso, o reforço é necessário. Sem conhecer a dança da respiração, que libera o corpo das toxinas e o enche de energia, adoecemos todos os dias. Nem sempre isso fica claro.  

A psicóloga mora, há 12 anos, em um sítio, próximo ao município de Ravena, em Minas Gerais. Por 40 anos, morou na Bahia, onde se formou na primeira turma de psicologia da Ufba. Enquanto vivia aqui, desenvolveu, com a argentina Theda Basso, a Dinâmica Energética do Psiquismo, presente em sete capitais, inclusive Salvador. Um dos alunos, na década de 1990 foi doutor Áureo, do Capão. 

A dinâmica consiste em estimular a percepção e a consciência das dimensões humanas - da física ao social. “A respiração é um instrumento fundamental para essa liberação de energia”, ressalta. A cultura ocidental da hiperprodutividade e das frustrações, no entanto, estimula uma respiração quase sempre curta, que só aciona a parte de cima dos pulmões. As consequências são o enfraquecimento dos sistemas respiratório e imunológico. O correto seria mobilizar todo o órgão e o diafragma, musculatura que separa o tórax do abdômen. A respiração mobiliza todas as partes do corpo e é o único processo fisiológico que o humano pode controlar. 

É o ar que dá ao corpo o oxigênio que ele precisa. Então, se a troca é pequena, o fluxo de ar é tão ínfimo que a expulsão de toxinas não ocorre da melhor maneira.  “Se não uso os pulmões completamente, eles vão ficando contraídos e a troca de ar é muito pequena. Minha integridade, minha clareza mental, minha vida ficarão ruins”, explica.Mais do que nunca, na pandemia de um vírus respiratório, é preciso falar sobre respiração. E entender em que ponto esquecemos de respirar. Quando nasce um ser humano, ele ‘engole o mundo porque respira totalmente’. “Mas, ele vai sendo restringido para se adequar à cultura em que nasceu. A gente aprende a não respirar para não incomodar, para não sair do modelo”.

É como se respirar errado tivesse sido transformado em estratégia de sobrevivência, em um mundo cada vez mais apressado e poluído. Até no sítio pacato onde Aidda vive há partículas de ferro invisíveis no ar. Mas, é possível sobreviver de uma outra forma, ela alerta. Para isso, é preciso estar disposto a conhecer a coreografia da dança que nos mantêm vivos.

Leia a entrevista na íntegra: 

CORREIO: Respirar é a melhor forma de gerar energia. Além da consciência, é a respiração que nos diferencia? 

Aidda Pustilnik: A respiração é a base da vida biológica. Tudo que é biológico, neste planeta, necessita de respirar e é mantido pela respiração. A respiração humana é muito importante pois move toda a energia do corpo. O órgão da respiração, que é o pulmão, metaboliza a respiração. Mas, o músculo mais importante da respiração é o diafragma, essa musculatura que separa o tórax do abdômen. 

E de que forma estamos respirando hoje? 

Nós vamos apertando o diafragma. Eu movo o diafragma para comprimir o pulmão e o ar sair. Esse movimento do diafragma movimenta todo o sistema respiratório do meu corpo e toda a circulação de energia. O que aconteceu na cultura que temos, especialmente a nossa, ocidental, baseada num processo de grande frustração? Nós vamos comprimindo nosso diafragma, então ele não faz esse movimento, e essa compressão do diafragma causa muitos problemas físicos, como problemas no intestino - o peristáltico - e no tórax. Ele vai comprimindo o ar e o coração e os pulmões ficam apertados.

Toda essa dança que existe entre o coração e pulmão, na transformação do sangue venoso em arterial, tem acontecido da forma mínima possível. Quando esse sangue não é totalmente renovado vai para as células corporais carregado de toxinas.

Trabalhar a respiração completa é uma tarefa que precisamos assumir porque naturalmente não fazemos isso, o que acontece é a compressão, uma respiração não completa. 

Mas, como eu posso perceber que não estou respirando corretamente? 

O corpo dá sinais, porque ele faz uma coisa: de vez em quando, a gente dá aquele suspiro, né? É sinal que está faltando oxigênio puro, limpo. Os pulmões podem estar cheios de ar velho. Eu acumulo o oxigênio velho, que não serve absolutamente para nada. Esse oxigênio, as vezes um litro e meio ou mais de ar, não serve para nada. Mas nos mantem vivos num momento de afogamento, por um, ou dois minutos. Mas, depois desse tempo, você inspira de qualquer jeito, eu nunca vou viver sem inspirar, mas posso morrer por excesso de ar. A exalação faz com que todo ar velho saia.

Vá acumulando sujeira, vá acumulando sujeira, ela se espalha nas células sanguíneas. Respirar é base da vida. Como eu respiro, eu vivo. Você precisa de mais energia? Exale, expire, três vezes já é o suficiente. Depois, faça o teste, exale, use a boca e o nariz.

A gente usa pouco a boca, pelos nãos que a gente recebe, pela vida lá fora. Essa região [aponta para o maxilar] fica travada. Expire. Em dois segundos, o ar começa a entrar. Você renovará todo seu sistema.

E como é que esses nãos vão se refletindo na minha forma de respirar? 

Toda essa região [aponta para o maxilar] é complicada. Se você coloca as mãos soltando o maxilar, experimente, sem levantar o maxilar, e solte a língua, veja como essa parte do pescoço fica molinha. Eu isso que eu chamo a gelra [os órgãos de respiração dos peixes] dos humanos. Nós contraímos essa musculatura conforme levamos nãos, e ficamos totalmente presos. Isso preso não permite uma exalação longa, profunda, e uma inspiração longa e profunda. Se isso está trancado, nada circula. Quer dizer, circula, mas pouquíssimo. "A gente aprende a não respirar para não incomodar" (Foto: Youtube/Aidda Pustilnik) Nosso cérebro é altamente oxigenado. Já que respiramos cada vez mais errado, quais são os possíveis impactos nesse órgão? 

Inspire e expire pouco e você vive pouco, em termos de experiência, de curiosidade, de descobrir a vida. Para você descobrir coisas na sua vida, o oxigênio tem que circular, o cérebro precisa estar irrigado de oxigênio. Eu trabalho principalmente com respiração e na respiração, a consciência da expiração. A principal dificuldade que vejo nas pessoas é a contração do diafragma. O diafragma da cultura ocidental está trancado.

Na maioria de nós, o diafragma prende a costela, que é móvel. A ioga usa bastante a respiração intercostal, fazendo essa mobilidade. A crença de que eu não tenho possibilidade de realizar determinadas coisas, que aprendemos, o não posso, não devo, causam isso. Esse não devo...

A maior dificuldade nossa é sentir. A gente se esqueceu da sensação, quando o corpo humano é todo de sensação. Eu nem presto atenção, algumas pessoas até sim, mas para a maioria... a sensação está longe. É a sensação que vai me dar a direção do que é bom e do que é ruim. A respiração é fundamental para ouvir o que se sente.

Hoje, que vivemos com a máscara, terrivelmente de máscara, a respiração fica bem curtinha. Além de respirar curtinho, agora temos medo da respiração porque estamos ameaçados de morte, todos nós. Nós sufocamos tanto o planeta - com lixo, veneno - que o planeta falou: deixa eu mostrar para eles como é viver sufocado.

A respiração curta nos deixa mais vulneráveis, então?  

Cada vez mais. Nós retiramos bem pouquinho de ar na expiração. No cotidiano, respiramos bem pouquinho, na maioria das vezes, acionamos só a parte alta dos pulmões, nem movemos o diafragma, nem a barriga. Eu tenho bem pouquinho ar, tenho bem pouquinha vitalidade, bem pouca oxigenação das minhas células, e fico mais enfraquecida.

Estou falando da energia vital, a que sustenta a vida na terra. Essa energia vital das plantas, dos animais, que desce dos raios solares e penetra e mantém a vida na terra. O ser humano para ser saudável tem que conviver com a terra - e a gente quase não bota o pé na terra - e respirar profundamente. A respiração, na verdade, quando falamos nela, todo mundo pensa na inspiração."Mas a grande chave da respiração é a exalação. Quando eu exalo, eu estou esvaziando os pulmões de todas as toxinas, e aí o oxigênio limpo pode entrar. Aí ele faz a transformação de todas as toxinas do sangue venoso em sangue arterial, carregado de energia limpa. Se eu não esvazio os pulmões, estou colocando ar novo numa xicara suja, bem velha. Esvaziar os pulmões é uma arte, porque ele não se esvazia todo, ele esvazia o tantinho que eu permito"Principalmente na nossa cultura. Temos uma cultura de posse, uma cultura de ter, que até o ar a gente quer guardar, nem os pulmões eu esvazio. Só que esse ar é velho, não me serve mais. Então, esvazie totalmente e encha de ar novo. Você vai fazer o ciclo completo.

E a doenças, eu fico mais sujeito se não respiro corretamente? 

Quanto mais estresse, mais desconectado de mim, mais meu sistema imunológico fica baixo. Além do que, vivemos numa sociedade que promove medo e estresse. De forma geral, o modelo é esse. O sistema imunológico também está muito baixo, de todos nós.

Se eu não uso os pulmões, porque não uso ele todo, se você está estressado sempre, a quantidade de “tem que” nas nossas vidas é grande. O que eu tenho que, mais minha respiração errada, contrai meus pulmões, e a troca de ar é muito pequena. Então, minha integridade, minha clareza mental, minha vida ficam muito ruins. 

Quando nascemos, usamos mais a respiração diafragmática. É depois que isso acontece. Por que desaprendemos a respirar? 

Por uma cultura rescintiva, basicamente. Quer dizer que para adequar um ser que nasce, capaz de respirar totalmente e por isso engole o mundo, o bebê engole o mundo porque respira totalmente, ele tem que desaprender. Ele vai sendo restringido para se adequar à cultura em que ele nasceu. Vai se adequar ao que é bom e ao que não é bom, segundo a cultura. O corpo vai se adequando ao que ele deve e não fazer e os músculos vão sendo contraídos. Diretamente, o ar que respiramos é atingido. A gente aprende a não respirar para não incomodar, para não sair do modelo cultural em que nascemos.

Depois de uma pandemia que afeta sobretudo nossas vias respiratórias, você tem visto uma reconexão com a respiração?  

Olha, difícil. Estamos tão arraigados em crenças errôneas, tão arraigados, que nem morrendo sufocados estamos dispostos a fazer mudanças. É grave. Então, acredito que pouco se mudou nesse caso. As pessoas, tudo bem, algumas estão pensando um pouco mais, tomando contato com a realidade como ela é. Antes, não. Está sofrendo? Vai ver filme, vai passear no shopping, e assim nos esquecemos do sofrimento e não nos dávamos conta da desigualdade do planeta. Estava fazendo aqui uma comida, dias desses, com um monte de tomate que não pode ir para o supermercado.

Aí minha ajudante falou: a senhora ganhou o que o mercado joga fora. A gente está mudando? Muito pouco. Tem momentos, sim, de solidariedade, mas não uma mudança fundamental de crença. Não é, ainda não é. O que me deixa assustada: até onde precisaremos ser sufocados para aprender? Ainda não vejo essa reconexão, porque crenças são muito difíceis de ser refutadas."Os impactos psíquicos são muito fortes. Aqui no interior, não sei nas capitais, onde não tenho estado, eu sei, por exemplo, que abre um pouquinho as coisas, as pessoas saem e vão para as festas, o que eu não compreendo. Como dar uma festa se muitas pessoas não estão nem respirando?"Antes de você ter covid, comece a respirar (risos). Solta o ar conscientemente, enche da barriga até o pulmão, faça o movimento do diafragma. Cinco minutos por dia o corpo aprende e ele faz sozinho. O corpo é um ser de aprendizado. O que você ensinar para ele. Ele aprende. 

A gente vive respirando há milhões dos anos, mas somos muito vulneráveis a vírus. Por que não evoluímos nesse sentido?

Na verdade, há sociedades bem evoluídas nesse ponto. Os indianos sabem o valor da respiração, tem uma consciência muito clara da respiração. Eles sabem perfeitamente como que respira e eles limpam as narinas todos os dias, tanto quanto tomam banho, escovam os dentes. Eles sabem perfeitamente como que respira. A cultura ocidental foi que, digamos assim, se desconectou bastante.

Você não faz um trabalho corporal que não tenha envolvida a respiração, que é o processo fisiológico que tenho acesso conscientemente. Eu posso acelerar, diminuir, qualquer técnica de trabalho corporal entra a respiração.

O filósofo Chuang Tsu costumava dizer que as crianças respiram pela barriga e nisso consiste boa parte da vitalidade delas. Essa vitalidade pode ser recuperada?

A gente pode, claro. Na medida em que eu vou desbloqueando as contraturas corporais, à medida que eu vou me sentindo mais livre para expressar aquilo que eu sou, e nisso a respiração é fundamental, eu vou me tornando mais presente na vida e tomando mais responsabilidade nos meus atos. 

Mas, os pais hoje não cuidam muito dos filhos, delegam. Quando um bebezinho é colocado na creche, ele deixa de ser um individuo, ele, passa ser uma pessoa social no meio de outras. Aí já muda completamente a vida. O bebê precisa dessa atenção e hoje não temos a disponibilidade, a maioria, claro. A conectividade, claro, que vai ter impacto desde pequeno, porque a criança não está mais dentro dela, está fora, ligada no automático, na programação, não dentro. Uma criança ganha um telefone para ir brincar, já sabe mexer. Tem seu lado positivo e negativo, como todas as coisas.

A superprodutividade nos coloca na condição de respirar curto e, quando buscamos escapes, geralmente é com exercício físico. Estamos subdimensionando a importância de respirar? 

A gente não compreendeu a real necessidade de respirar. Agora, vou te falar algo importante. O único movimento fisiológico que você tem acesso consciente é a respiração. Você não pode mudar sua digestão, sua circulação sanguínea, você não pode mudar nenhum sistema fisiológico, mas você pode conscientemente mudar a respiração. Por que será que o universo nos deixou um sistema fisiológico que eu tenho acesso? Porque ela é fundamental para a consciência humana e a manutenção do corpo. Eu posso mudar a qualquer hora, eu posso exalar conscientemente, inspirar conscientemente."Posso, num momento de ansiedade, trabalhar minha respiração, e ficar mais calmo. Eu posso respirar conscientemente até no parto e melhorar as dores das contrações. A primeira coisa que a gente faz é respirar. Por que eu inspiro? Por que eu expiro?"Se os pulmões estivessem cheios na hora de nascer, eu não respiraria. Quando todos nós nascemos, nós inspiramos porque os pulmões estão vazios, e só aí tem início a vida. Esvaziar é muito importante para a gente respirar outra vez. 

É o ambiente externo, com tanta poluição etc., que impõe um desaprender do respirar?

A nossa cultura nos fez desaprender a respirar. Uma pessoa que aprende a circular energia no corpo vai começar a questionar muita coisa sobre a cultura que ela nasceu e vai incomodar bastante. Aqui em Minas, somos o lugar da mineração no Brasil. As minas são gerais aqui. Eu mesma moro num condominiozinho pequeno na beira da Serra da Piedade e aqui tudo é ferro. Você cava e tira montes de ferro. Então, tem uma poeira invisível que resiste no ar.

É imperceptível, mas há muitos problemas respiratórios por causa dessa poeira e aqui é um lugar tão lindo, com muita vegetação e oxigênio, mas também com muita poluição. Isso sem falar com aí em Salvador, a quantidade de gás carbônico é algo drástico. Você joga uma energia massiva disso para dentro. São Paulo, ver o céu azul, é raríssimo. Então, essa cultura nos faz desaprender a respirar. 

Veja alguns vídeos de Aidda Pustilnik no Youtube: