A grama verde do vizinho é uma questão metafísica

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  • Kátia Borges

Publicado em 19 de julho de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Outro dia, rindo, um amigo contou ter perdido temporariamente a memória. Aconteceu no fim do ano passado. Ele estava indo para a casa da namorada, que fica a algumas quadras da sua, numa noite de domingo. No meio do caminho, sem motivo aparente, foi tomado por um sentimento de estranheza em relação ao mundo.

De repente, não tinha a menor ideia de para onde seguia, andava simplesmente, sem qualquer referência em relação ao percurso. A coisa foi de tal modo que passou duas vezes pela porta da casa dela sem se dar conta de aquele era o seu destino. Pela janela do quarto, no segundo andar, a garota o avistou e foi atrás dele.

Que brincadeira maluca era aquela? Tomando fôlego, enquanto contava a história, meu amigo disse que levou um baita susto ao escutar a voz da namorada e estancou o passo. Quando se voltou, foi como se a visse de novo pela primeira vez. Não que a desconhecesse por completo, mas ela parecia outra, alguma outra pessoa.

Aquilo durou apenas alguns minutos, a sensação de estranheza. Nada que se parecesse nem de longe com o que imaginamos como sendo uma experiência extraordinária. Apenas a mente e o corpo se desconectaram do presente, da mecânica de uma ação tão simples quanto atender um comando. Ir de um ponto a outro.

Com vergonha de confessar a súbita amnésia, ele inventou uma desculpa sem pé nem cabeça e os dois seguiram juntos para a casa dela. Iriam ao cinema assistir Coringa. Ainda hoje, meu amigo não entende o que aconteceu naquele momento. Por via das dúvidas, procurou um neurologista e fez vários exames. Tudo certo.

Acho graça dessa história. Uma chuvinha fina aparece e some, como se brincasse comigo. Fecho a janela de vidro da pequena biblioteca. Vou até a cozinha e verifico se o piso segue imune aos pingos, que batem de açoite contra o prédio. A máquina de lavar roupas faz o ruído característico de fim de ciclo. Fim de ciclo, penso.

Eletrodomésticos entendem o funcionamento das coisas. Seguem sempre o mesmo ritmo, estrilam se aceleramos. Tudo corresponde àquilo que consome em voltagem. Acordo cedo, porque é preciso dar conta das leituras. Oscilo entre Linha M, de Patti Smith, e os últimos capítulos de O homem do castelo alto, de Philip K. Dick.

Com sorte, mais tarde, talvez consiga escrever uma ou duas páginas. Gosto de quando amanhece e tudo ainda pode ser de outro modo. Vinte e quatro horas para mudar o mundo. Vai ver será hoje o anúncio do remédio efetivo, o recuo significativo do número de mortos, a liberação da vacina de Oxford, apenas mais um domingo.