A hora de decidir: como será a escolha de quem comandará o Afonjá após Mãe Stella

Data provável para o jogo de búzios é 28 de dezembro e crença determina que escolha depende do orixá Xangô

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  • Alexandre Lyrio

Publicado em 8 de dezembro de 2019 às 04:04

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Mauro Akin Nassor/Arquivo CORREIO
1 Mãe Aninha de Xangô 1910-1938 Dissidente do Terreiro da Casa Branca, ela fundou o Ilê Axé Opô Afonjá e criou o Corpo dos Obás de Xangô, composto por 12 ministros

Não adianta ser a mais velha da casa, ter sido amiga ou ser parente próxima da antecessora. Não adianta ter mais estudo, posses ou até o “santo mais forte”. No final das contas, será o machado de Xangô, orixá da Justiça e patrono do Ilê Axé Opô Afonjá, que vai decidir quem será a sucessora de Mãe Stella de Oxóssi - nascida Maria Stella de Azevedo Santos. Um jogo de búzios realizado por um pai ou mãe de santo de notável saber definirá a dona do novo trono que será colocado no Barracão.

Mas, quem vai fazer esse jogo? Por que e como essa pessoa é escolhida? De que forma esse jogo é interpretado? Aí é que entram todas as questões humanas, sejam elas políticas, afetivas e de hierarquia. Quem tem fé nos orixás acredita que a mão de quem jogará os búzios influenciará diretamente no resultado. Por isso, essa definição envolve tantas discussões, critérios e mistérios. (Foto: Dadás Jaques) Um ano depois da morte de Stella, com a suspensão do calendário litúrgico do terreiro por todo esse período, a data provável para o jogo de búzios no Afonjá está definida: dia 28 de dezembro. Na verdade, seria no dia 27, quando se encerra o axexê. O ritual fúnebre dos candomblés da nação ketu é realizado quatro vezes após a morte da líder do terreiro: nos sete dias seguintes ao falecimento, nos sete dias antes de completar três e seis meses do falecimento e nos sete dias antes de completar um ano do falecimento.

Então, a data seria 27, quando Stella morreu um ano atrás. Mas, como 27 cai em uma sexta-feira, este é um dia guardado pelo candomblé. O terreiro não pode fazer atividades. Então, o jogo deve ocorrer no sábado, dia 28.“Costuma acontecer depois de um ano, que é uma regra para os ketus, mas nem sempre isso é respeitado por questões diversas, particulares, e às vezes vai para mais ou menos dias”, explica o antropólogo Júlio Braga, que esteve presente na escolha de Mãe Stella como ialorixá.Segundo o antropólogo, que é professor aposentado da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs) e um dos maiores conhecedores do Ilê Axé Opô Afonjá, o terreiro que Stella comandava tem uma complexa estrutura política e hierárquica. “Não dá para dizer que não tem movimentações políticas, avaliação de capacidade, moralidade, relação com o santo, relação com a finada. É um conjunto de coisas que vão sinalizar. Mas são os búzios que definem”, confirma Braga.

E a mão do jogo? Essa é escolhida pelo Conselho Religioso da casa, formado por quatro antigas sacerdotisas. São elas Edit Santos Andrade, a yakekerê Ditinha, 83 anos; Raimunda Antônia de Paula, a iyá-dagan Mundinha ou Mãe Mundinha, 64; Valdomira Alcântara, a Ogalá Tutuca ou Mãe Tutuca, 64; e Maria Pimentel, a mãe Maria ou Iyá Efun, 70. Alvo de todo o tipo de influência, deste ou de outro mundo, elas têm se reunido para escolher o pai ou mãe de santo que vai jogar. Da esquerda para a direita: Ditinha, Tutuca, Mundinha e Mãe Maria (Foto: Betto Jr/ARQUIVO CORREIO) O presidente da Sociedade Cruz Santa, entidade mantenedora do Afonjá, diz que as sacerdotisas não falam sobre o assunto antes da decisão, até porque elas mesmas são fortes candidatas ao posto. Primeiro porque o Afonjá é um terreiro matriarcal e só pode ser liderado por ialorixás. Segundo porque, pelos cargos que ocupam, elas são consideradas aptas a assumir. “O Conselho Religioso é que tem o poder dessa decisão. Só depois elas comunicam à Sociedade”, explica Ribamar Daniel, que é ogã do terreiro.

Eliminação  A cerimônia que escolhe a nova ialorixá é aberta ao público e acontece no Barracão. Todos os filhos de santo, o Conselho Religioso e a Sociedade Cruz Santa estarão presentes. O jogo de Ifá é tido como um jogo de complicada interpretação, apenas para estudiosos e pessoas com largo conhecimento da religião. Os especialistas consultados pelo CORREIO explicaram que a escolha se dá por eliminação. 

O funil espiritual inicialmente indica qual “odu”, ou seja, qual caminho ou destino tem a nova ialorixá. Depois, um novo jogo indica qual orixá é dono do ori (cabeça) da pessoa. Muitos então são “eliminados”. De acordo com a queda dos búzios, os que ficam são confirmados ou não. No final, sobra uma pessoa e Xangô dá o veredicto. Xangô pode também não escolher ninguém e a casa aguardará mais um ano para novo jogo.“São 16 búzios e, na hora que pega quatro e sai numa posição absolutamente satisfatória, essa queda é chamada de alafia (quatro búzios abertos), que é a aceitação plena de que a pessoa que está ali no jogo sucessório é pai ou mãe de santo. Quem está fazendo o jogo não é responsável por quem será o sucessor. O jogo é aberto”, destaca o antropólogo Júlio Braga. Entre os que conhecem do Ifá, há um consenso sobre se aquela é mesmo a escolha de Xangô.“Há uma série de fatores intervenientes que diminuem em grande parte a possibilidade de que o pai ou mãe de santo que está fazendo o jogo tenha influência forte na escolha da pessoa e a responsabilidade é do orixá que toma conta da casa”. Normalmente, observa o antropólogo, há pequenos grupos que não ficam satisfeitos. “É uma democracia”. Mas, diz, o consenso volta e é necessário para o bom andamento da casa. “A nova mãe de santo terá que mostrar liderança religiosa com compreensão política de diversos setores para poder retomar a tranquilidade”. 

Sobrinho de Mãe Stella, Adriano de Azevedo diz que, antes de morrer, Mãe Stella apontou quem ela gostaria que fizesse o jogo de Ifá. “Falou não só para mim como também para outras pessoas. Mas sei que isso não depende da vontade dela e nem da minha. Não vou revelar para não expor a pessoa”, afirma Adriano, que diz ter se distanciado um pouco das “coisas do axé” para cuidar de um problema de saúde.

Ele acredita que o nome do pai de santo que fará o jogo já foi escolhido, mas só será revelado próximo da data. “Provavelmente já se tem essa pessoa. As ‘panelinhas’ aqui já devem ter conversado. Mas não sei qual foi a decisão de quem vai fazer o jogo”, garante Adriano. “A partida de Mãe Stella deixou um buraco gigantesco. Era uma intelectual, uma mulher sábia. O que espero é que a escolha seja digna, que não seja nada manipulado. Quero acreditar que não haja corrupção e que Xangô se manifeste”, diz Adriano.     

Quem joga?  Apesar de ser um terreiro matriarcal, historicamente, a mão que joga os búzios para a escolha de uma ialorixá é masculina. Nas últimas sucessões do Afonjá (e de outros dos principais terreiros de Salvador), isso ficou a cargo de Agenor Miranda Rocha, o Pai Agenor de Oxalá, iniciado por Mãe Aninha de Xangô, nada menos que a fundadora do Ilê Axé Opô Afonjá. Pai Agenor faleceu em 2006 aos 106 anos. “Era ele que fazia o jogo advinhatório, o jogo de Ifá da sucessão, de todos os terreiros”.

Com o falecimento de Agenor, alguns nomes são sugeridos como os mais fortes para fazer o jogo. Um deles é o de Balbino Daniel de Paula, o Obaràyí, que também esteve presente na escolha de Stella. Pai Balbino é uma das maiores autoridades masculinas dos candomblés do Brasil. Babalorixá do Terreiro Aganju, em Lauro de Freitas, ele foi iniciado por Mãe Senhora, a terceira Mãe de Santo na linha sucessória do Afonjá.  Pai Balbino: nome forte para fazer o jogo (Foto: Dadá Jaques) Balbino é hoje o homem mais antigo ligado à casa, o único vivo que não foi iniciado por Stella, e tem como dono do seu ori o próprio Xangô. Para ele, o grande desafio da nova Ialorixá é recuperar o respeito do Ilê Axé Opô Afonjá, que teria se perdido no final da sua gestão. “O Afonjá, meu filho, foi a terra que Aganju nasceu”, diz ele referindo-se ao seu Xangô.“A grande missão é trazer o Afonjá de volta, limpar o nome do terreiro. Na Bahia não tinha casa com mais fama. É uma responsabilidade muito grande. No final, ela (Stella) não aguentou”, lembra Obaràyí.       Racha O final da trajetória de Stella no Afonjá foi marcado por um racha, uma briga que envolveu a companheira da Ialorixá, a psicóloga Graziela Domini. Na época, ela foi acusada pelos integrantes da casa de manipular Mãe Stella, uma senhora nonagenária. No dia 23 de novembro de 2018, dia de Oxóssi, Mãe Stella participou pela última vez de uma celebração no Ilê Axé Opô Afonjá.

Desde então, foi morar com Graziela na cidade de Nazaré. As religiosas da casa cobraram que Stella fosse dar satisfação à Xangô. “Tenho 47 anos de santo e nunca vi nada igual. Nenhuma daquelas ali fez nada parecido”, disse, à época, Mãe Mundinha, apontando para os quadros das ialorixás Aninha, Bada, Senhora e Ondina, as antecessoras d Stella.

Veio a morte da Mãe de Santo, aos 93 anos, em um hospital de Santo Antônio de Jesus e, por pouco, seu corpo não era enterrado em Nazaré, como queria Graziela. Para garantir a realização dos rituais fúnebres, a Sociedade Cruz Santa entrou com ação judicial e, mesmo com a guia de sepultamento impressa, o corpo mudou de mãos.   

Pelo estatuto do Afonjá, quando a mãe de santo se ausenta ou morre, a liderança passa à yakekerê, a chamada Mãe Pequena, segunda pessoa do Conselho Religioso. No caso, Ditinha é a líder atual. Ela e as outras preferem não se manifestar sobre a escolha. Até porque, no final das contas, essa decisão pertence a Xangô. 

60% dos terreiros de Salvador são matriarcais

Atualmente, a capital baiana possui cerca de 2 mil terreiros de candomblé e, destes, quase 60% têm tradição matriarcal, assim como o Ilê Axé Opó Afonjá. Os dados são da Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro-Ameríndia (AFA), que cataloga e trabalha com a preservação de espaços sagrados de religiões de matriz africana e indígena. 

“Porém temos que levar em conta que em muitos templos houve alternância entre homens e mulheres como liderança espiritual”, lembra Leonel Monteiro, presidente da AFA. Ainda segundo ele, ter maioria de mulheres liderando comunidades afro-religiosas é uma característica histórica no Brasil, mas o contingente de homens à frente dos terreiros vem se mostrando crescente a cada ano. 

Desafios  Para ele, os desafios da sucessão do Afonjá é, em primeiro lugar, manter vivo o legado deixado pelas fundadoras ancestrais que implantaram um dos mais importantes axés de tradição ketu. “Outro desafio será manter-se firme no combate à intolerância religiosa que assola o país e ainda reagrupar todos os filhos e filhas ligados à casa”, conclui.

O presidente acredita que cada tempo histórico tem suas próprias dinâmicas e que, para manter esse legado de peso e conseguir fazer o próprio nome, a nova sacerdotisa precisa enfrentar o racismo nos moldes atuais.“Às vezes, as mesmas coisas acontecem de forma diferente, a vida é dinâmica. A nova líder se diferenciará das outras na forma como ela se posicionará publicamente contra o racismo e a intolerância contemporânea. Hoje não existe mais escravidão aqui, mas o racismo tá aí de outras formas”, comenta.As ialorixás do Afonjá

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