A hora mais escura

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  • Paulo Sales

Publicado em 28 de setembro de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Não deve ser por acaso que tenho lembrado com alguma frequência de Cathy Ames. Ou melhor: da descrição que John Steinbeck faz, em A Leste do Éden, “da mulher que causou uma agitação dolorosa e desconcertante no seu mundo”. No romance (que considero o melhor do autor norte-americano), Steinbeck estabelece uma analogia entre monstros físicos – pessoas que nascem com anomalias graves no corpo – e monstros mentais ou psíquicos. Estes seriam almas deformadas, despidas do senso moral vigente em sua época, ou talvez de qualquer senso moral vigente em qualquer período da civilização.

“Alguma peça da balança estava com o peso mal calculado, alguma engrenagem fora do eixo”. Cathy era assim, e foi assim que ela destruiu a vida de todas as pessoas com quem se relacionou, incluindo aí o marido, Adam Trask, e o filho Cal, que se corroía de angústia por temer ter herdado dela o gene da maldade. É pouco? Pois bem, foi ela a responsável – quando tinha 16 anos – pela morte dos próprios pais, ao forjar um incêndio na casa onde moravam e trancar as fechaduras para que não pudessem escapar.

Steinbeck vai mais longe: “Talvez todos tenhamos um lago secreto onde coisas más e feias germinam e se fortalecem. Mas esta cultura é cercada e os germes da maldade sobem até a borda só para cair de novo no lago. Não poderia ocorrer que nos lagos escuros de alguns homens a maldade tivesse força bastante para saltar a cerca e nadar livremente? Não seria esse tipo de homem nosso monstro e não estaríamos ligados a ele em nossa água oculta? Seria absurdo se não entendêssemos tanto os anjos como os demônios, pois fomos nós que os criamos.”

É bem provável que estejamos vivenciando uma espécie de transbordamento coletivo desse lago secreto, no qual as coisa más e feias germinam, se fortalecem e atingem como um tsunami o que está em volta. Desta vez, para nossa infelicidade, fora do território da ficção. Isso me ocorre quando me deparo com as notícias a respeito dos incêndios criminosos no Pantanal, a agonia e morte em massa de animais raros, o bioma destruído. E, principalmente, quando me deparo com o cinismo, a abjeção e a absoluta incapacidade de quem, em teoria, deveria combater esse crime, entre tantos crimes que vêm sendo cometidos desde o início de 2019, quando teve início nossa desdita.

É um sentimento de desalento, impotência e ódio mudo que nos adoece. A ideia de que o mal, em toda a sua extensão, se abateu sobre um país. O mal personificado em uma só pessoa, mas que vai além dela. Habitualmente, ao contrário do maniqueísmo bipolar dos filmes hollywoodianos, mal e bem habitam uma zona cinzenta, matizada, e muitas vezes não se percebe a fronteira que separa um do outro. Mas não creio que seja o caso. Não há nada de cinzento, matizado, dúbio no que se vê hoje no Brasil. Apenas uma maldade vicejante, proliferando como um vírus no organismo de uma nação.

Que engrenagem foi responsável por esse estado de coisas? Que peso mal calculado foi capaz de produzir tamanha aberração? Fico com Steinbeck: monstros já nascem monstros. Mesmo que tenham o rosto angelical de Cathy Ames, os olhos claros e gélidos de Ricardo Salles, o semblante estúpido de Damares Alves, a prepotência tosca de Paulo Guedes ou, pairando acima de todos eles, a podridão sem meias medidas de Jair Bolsonaro. Deixamos o arremedo de Éden em que vivíamos – hoje idílico – e caminhamos a passos largos para a provação mais dura, o inferno mais impiedoso, a hora mais escura.