A internação involuntária de dependentes químicos ajuda na reintegração social do usuário de drogas?

A lei foi sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro na semana passada e caminha da direção radicalmente oposta ao movimento antimanicomial

  • D
  • Da Redação

Publicado em 16 de junho de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: .

A covardia política  e o dilema social

Na semana passada, o presidente Jair Bolsonaro sancionou a lei que facilita a internação involuntária de dependentes químicos. Grupos políticos, relacionados à famigerada reforma psiquiátrica, se manifestaram contra a decisão. Os argumentos são estapafúrdios: alegam que a medida impulsiona o encarceramento de qualquer usuário de drogas, numa distorção oportunista do texto legal tão característica desses movimentos que, quase sempre, se pautam em ideologias e ignoram o conhecimento técnico. Pior: acreditam que os psiquiatras agiriam como militantes sociais, promovendo um encarceramento em massa de usuários, como se fossem incapazes de distinguir a diferença entre simples usuários e dependentes químicos.

Desde a contracultura dos anos 60, a loucura se tornou objeto de um aparelhamento ideológico de esquerda, no qual o louco deveria ficar nas ruas para denunciar uma suposta chaga do capitalismo, descaracterizando o dependente do que ele realmente é: um doente que precisa de ajuda especializada. Hoje, milhares desses doentes se aglomeram nas chamadas Cracolândias, presentes em toda grande cidade brasileira, expondo-se ao risco das ruas, ameaçando a integridade das outras pessoas (pois acabam cometendo crimes para sustentar o vício), depreciando o espaço público e quebrando o decoro social, imprescindível para uma comunidade sadia.

A nova lei viabiliza que o dependente tenha acesso ao tratamento adequado, mediante solicitação da família ou, na ausência dela, dos representantes do Estado. Também exige a avaliação de um psiquiatra, profissional capaz de determinar a necessidade de uma internação, que deve ser realizada em um ambiente adequado. A internação não faz milagres, mas, para dependentes em situação de rua, ela é imprescindível para preservar a vida, promover a desintoxicação, a adesão ao tratamento, e estabelecer uma estratégia de reabilitação e prevenção de recaídas. Livre dos sintomas agudos, o indivíduo terá a chance de retomar sua vida sociofamiliar, sua carreira profissional e assumir o controle do seu destino nas mãos.

Para isso, o primeiro passo é superar a covardia política das autoridades públicas, que são cúmplices dessa desordem social, incapazes de uma ação humanitária básica para proteger dependentes e sociedade dos sintomas nocivos da dependência química.

Nesse dilema social, a doença mental é quem aprisiona o indivíduo em um ciclo compulsivo de uso e abuso da droga; a internação o libera.

Luiz Fernando Pedroso é médico psiquiatra, diretor clínico da Holiste Psiquiatria

O desafio da dignidade negada

Considero ser absolutamente compreensível que a população, em geral, requeira uma solução rápida e definitiva para a problemática da crescente população em situação de rua e usuários de drogas empobrecidos no Brasil. Nas cidades, a desigualdade sociorracial e a pobreza se escancaram às nossas vistas. Assim sendo, aparentemente, a alternativa da internação forçada parece algo contundente para tratar o problema. Entretanto, acontece que antes de nos posicionarmos, precisamos compreender algumas questões que compõem esse jogo:

- há uma imensa diversidade de pessoas e casos clínicos nas ruas, de modo que, tecnicamente, é impossível considerar que todas terão a mesma resposta clínica; 

- se trata de uma medida temporária e que não traz junto, necessariamente, alternativas para o pós-internamento; 

- essa é uma medida que, mesmo sem o respaldo legal, já foi tentada por governos, como mais recentemente se viu em São Paulo, nas chamadas Cracolândias, e o retorno das pessoas às ruas se deu e foi amplamente demonstrado pela imprensa nacional; 

- a medida ataca uma conquista histórica da luta antimanicomial, que promove a reforma psiquiátrica e apresenta caminhos para superar os horrores vividos por pessoas que eram esquecidas nos manicômios. 

O desejo de retirar o problema das nossas vistas não justifica aceitarmos coletivamente o retorno formal das antigas instituições manicomiais. Saídas como essas não devem interessar a uma sociedade que quer soluções e não colocar os problemas para debaixo do tapete ou para trás dos portões manicomiais. Essas medidas, pelo potencial em gerar lucro, interessam as clínicas particulares (vez que os hospitais públicos não darão conta) e a indústria farmacêutica, tal qual a privatização dos presídios interessa aos empresários do ramo. 

Para a sociedade brasileira que aguarda uma resposta do Estado para a problemática em curto tempo restará a frustração. Se precisamos apoiar ou decidir por alguma medida, precisamos nos inteirar sobre o assunto: a base do problema das drogas está no extremo empobrecimento e profunda desigualdade sociorracial do país. Nesses termos, a saída está no seguinte sentido: uma rede de atenção psicossocial estruturada (que consiga sustentar um cuidado integrado, em liberdade e em comunidade); educar nosso olhar para não naturalizar a violência institucional e nos responsabilizarmos coletivamente pela solução.

Trícia Calmon é coordenadora do programa estadual Corra pro Abraço e Conselheira do Cepad

Um dano de difícil reparação

A internação compulsória, determinada pela justiça, bem como a internação involuntária - que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro, prevista na Lei 10.216/2001, somente pode ser efetivada mediante laudo médico circunstanciado e como medida de exceção, ou seja, quando os recursos extra-hospitalares de cuidado mostrarem-se insuficientes. Na recente Lei nº 13.840, de 05 de junho de 2019, na ausência de familiar ou responsável legal, a internação involuntária de usuários de drogas também pode ocorrer a pedido de servidor público.

Na minha experiência, atuando desde sempre no campo da Saúde Mental, dificilmente uma internação compulsória ou involuntária tem como efeito a reinserção social e familiar do usuário, considerando que é uma intervenção que desrespeita o princípio da autonomia e da liberdade da pessoa, ferindo a condição fundamental do cuidado em saúde, isto é, a confiança que sustenta o vínculo entre o profissional e o usuário. A internação, nestes moldes pode ser um dano de difícil reparação; pode ser a dor maior. Nas situações específicas que envolvem usuários de álcool e outras drogas, esse procedimento parte do princípio de que a droga é o problema que precisa ser eliminado, igualando usuários, contextos, substâncias e padrões de uso, tão singulares e exigentes de estratégias de cuidado também singulares. É preciso considerar que a questão dos usos de drogas será sempre uma questão humana, relacional, e não apenas “química”. 

É certo que todos os humanos estão susceptíveis de encontrar no uso de drogas o prazer imediato que promete o social e/ou a solução para as dores de existências, em que a violência imposta como condição para viver e sobreviver é a maior das violências. Essa recente Lei alcançará, em particular, as pessoas pobres, com menor valor social, em situação de rua, com laços familiares frágeis ou inexistentes, designadas como drogados(as), palavra que parece dizer e justificar “tudo”. Aqui, mascaram-se os efeitos de uma vida marcada pelas impossibilidades de “ser”, sendo atribuído à droga todo o ônus do fracasso social. 

As drogas, e os usuários, não são o verdadeiro problema a ser combatido ou isolado, mas sim, as situações geradoras de preconceitos, exclusões, humilhações sociais e violências de milhares de pessoas que já nasceram condenadas a uma vida para a morte. Acolhimento e reconhecimento, tempo e paciência, vínculo e aposta nas relações afetivas é o que, de fato, possibilitará que a dor e o sofrimento se refaçam.  

Patricia von Flach é psicóloga clínica; assistente social;  doutora em Saúde Coletiva – ISC/UFBA

Opiniões e conceitos expressos nos artigos são de responsabilidade dos autores