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A maternidade e a Grande História

  • Foto do(a) author(a) Paulo Sales
  • Paulo Sales

Publicado em 7 de fevereiro de 2022 às 05:05

 - Atualizado há 2 anos

. Crédito: .

Mães Paralelas é um belo tratado sobre as agruras da maternidade. Para Pedro Almodóvar, ser mãe significa ao mesmo tempo clausura e libertação. São mulheres solteiras que decidem levar adiante a decisão de ter seus filhos e criá-los, mesmo com todas as adversidades e peças pregadas pelo destino. Rebentos nascidos de um ato fortuito ou de violência extrema promovendo uma mudança brusca na rota de vida de uma mulher madura e de uma adolescente.

O acaso une e aparta pessoas. Janis (Penélope Cruz) e Ana (Milena Smit) carregam suas crias e o mundo nos ombros. Sao pequenas heroínas, cada uma à sua maneira, sobrevivendo num cenário onde os homens são ausentes ou pior: nocivos. Com suas renúncias, dissabores e mentiras sinceras, elas enfrentam a vida com destemor. Quando o afeto irrompe de forma inesperada, o que fica é uma imensa solidão a duas. Já para a mãe de Ana, Teresa (Aitana Sánchez-Gijón), a maternidade é um grilhão.

Almodóvar maneja as ferramentas do melodrama com perfeito domínio do tempo narrativo, construindo uma história dura, pungente, que escapa do óbvio e do previsível mesmo quando eles parecem se instalar. Poucos cineastas se sentem tão à vontade ao imergir no universo feminino e compreender a dor e a delícia de ser mulher.

Mães Paralelas é, no entanto, muito mais do que um filme sobre a maternidade. Mimetizando a geopolítica contemporânea, com seus líderes de extrema-direita torpes e disruptivos, o fascismo brota aqui como um cadáver insepulto. A princípio como pano de fundo, para ao final alcançar o devido protagonismo.

A chaga aberta da Guerra Civil Espanhola desponta em todo seu tenebroso esplendor. Explica-se: o bisavô de Janis foi um dos dez homens executados pelas tropas de Franco e enterrados numa cova rasa próxima à aldeia de sua família. O momento agora é de extirpar o passado, enfrentando-o no presente. Resgatar os ossos e dar a eles um tratamento digno. Encerrar o luto e lembrar que o mal não morre, apenas hiberna.

Almodóvar reconta ficcionalmente uma história real: a de uma mãe fuzilada com o chocalho do filho no bolso, num vilarejo espanhol. Lembro quando essa história foi publicada no El País e do quanto ela me comoveu. Décadas se passaram até que o incômodo silêncio tumular imposto pelo franquismo desse vez à necessidade de se verbalizar e reverberar a tragédia. É o que faz o cineasta: enfia o dedo na ferida de um conflito fratricida dos mais sangrentos, em um continente habituado a eles.

No momento em que os dramas individuais se amalgamam à Grande História, Mães Paralelas torna-se grande. Seus minutos derradeiros carregam uma dramaticidade dilacerante. Na cena final, uma metáfora perfeita do horror da guerra: a constatação de que os mortos do passado foram pessoas como os vivos do presente. Como qualquer um de nós, enfim.

* * *

“A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz do torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem às mãos”.

Esse trecho do livro O Povo Brasileiro, de Darcy Ribeiro, representa a mais perfeita tradução do brutal assassinato de Moïse Mujenyi Kabagambe, congolês de apenas 24 anos que fugiu do seu país em busca de uma realidade menos aterradora. Estava enganado. O Brasil, hoje, é a nação do desalento, das desditas, da desesperança. Um território hostil e brutalizado, refratário à ideia de civilidade e humanismo. Sobretudo para quem tem a pele preta.