A memória é um país insone

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  • Kátia Borges

Publicado em 28 de março de 2021 às 07:00

- Atualizado há um ano

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Chego de navio a Buenos Aires. O balanço suave denuncia a ancoragem da memória em um mundo que dorme sob as águas. A embarcação onde navego desde o Brasil se chama Poesia, mas não há versos na madrugada de março. Ao longe, as luzes de Puerto parecem quietas e, atrás do porto, a inquieta cidade de Bioy e Borges se ergue.

Intuo a iluminada fragata Sarmiento em Madero, tão kitsch e elegante quanto as ruas do bairro. As ruas com nomes de mulheres. Uma delas homenageia Juana Paula Manso de Noronha, pioneira do feminismo na América Latina. Distraída, penso em Ildefonsa Laura Cesar, a primeira poeta baiana a publicar um livro.

Em sua biografia restam poemas, o ano de nascimento e um manual que recomendava não ler mulheres como ela, escrito pelo pai de sua filha. Imagino que atravessa em silêncio a ponte giratória de Santiago Calatrava. O silenciamento a transformou em um fantasma, de tal modo que se desconhece as causas e a data de sua morte.

Mas é a voz feminina de Ildefonsa Laura que escuto agora, enquanto refaço a viagem, o aleph da memória. “Estou cansada de ser homem”, grita Ana Cristina Cesar. Talvez exista algum parentesco entre elas. Quão comum é esse sobrenome? Só as mulheres realmente ouvem as mulheres. O balanço da insônia me devolve ao navio de outrora.

E, em meio a uma profusão de hóspedes, turistas em cruzeiro, réstias da noite solitária desabam sobre os carregadores mecânicos, enigmáticos transformers de ferro como nos filmes japoneses do Robô Gigante. Logo mais invadiremos, em uma horda plastificada de capas e guarda-chuvas, o centro da cidade de Borges.

Sim, atravessaremos La Boca, passaremos em frente ao La Bombonera, iremos ao Caminito. Mas apenas chego a Buenos Aires de navio e chove. Debruçada na amurada da cabine, repouso os olhos na geometria tediosa dos pesados contêineres. Enfileirados e coloridos, encaixados como peças de lego, deformam a paisagem.

Tento adivinhar se abril nos trará sorte ou se será o mais cruel dos meses, como canta T.S. Elliot. Avanço nas ruas portenhas sob a chuva fina outra vez, a câmera em desfoque inventa arte. Talvez seja possível tentar o pneumotórax, Manuel, em lugar de tocar um tango argentino. A memória é um país insone.