A pele que desabito: quando sou sub-cidadã em meu próprio país

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  • Da Redação

Publicado em 30 de junho de 2022 às 06:30

- Atualizado há um ano

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Recentemente contei para um amigo sobre minhas vivências de sub-cidadã no estado de São Paulo, onde vivi a maior parte da minha vida, e no Rio Grande do Sul, onde morei por quatro anos e meio. Em determinado momento, esse amigo me perguntou: “Você já escreveu sobre isso?”. Eu não havia escrito ainda de modo explícito, mas me senti desafiada a fazê-lo imediatamente. Falar sobre essas vivências me convoca a "lugar" muito delicado, pois o pensamento dualista com o qual estamos acostumados só rotula as vivências enquanto polarizadas: positivo ou negativo, bom ou ruim, certo ou errado. E o que eu tenho para contar não transita nesses polos, mas os integra em suas múltiplas dimensões, inclusive naquelas que eu sequer consigo nomear. Pois bem... eu sou baiana, solteropolitana, vivi a primeira infância em uma cidade do sertão baiano chamada Carinhanha, e depois parti com minha família para morar em diversas cidades do interior paulista, então fomos mais uma família de nordestinos a migrar para o sudeste brasileiro. Lá tive muitas alegrias,  afetos, aprendizados, mas também foi onde experimentei pela primeira vez a xenofobia. Afinal de contas, ser nordestina, baiana, em São Paulo, significa ter que ouvir continuamente piadas sobre “baianos serem preguiçosos, falarem lento e gostarem de coisas bregas” (como roupas coloridas, estampadas, com cores vivas, vistas como cafonas pelo olhar de quem parece não gostar tanto assim da diversidade de cores). Pois bem... Eu vivi desde muito pequena a exclusão através de falas como: “Minha mãe disse que vocês baianos vêm pra cá vender maconha, cocada, e para roubar nossos empregos”, ou “Você ganha bolsa pra estudar aqui nessa escola?”, ou “Essa roupa você não tem dinheiro para comprar”, ao questionar o preço de uma roupa na loja do shopping, ou “Mas Salvador tem Pakalolo (marca de roupa de adolescentes dos anos 90)? Pensei que lá fosse uma fazenda”. Enfim, ser nordestina no sudeste significou, para mim, muitas experiências felizes, mas também muita dor e a percepção de ser um grande erro no meu próprio país. Não se pode cobrar de uma criança e adolescente ter consciência do que é a xenofobia, de criar recursos de enfrentamento para lidar com isso de modo saudável. Meus pais me apoiavam, mas também passavam pelos mesmos processos de exclusão, só que no mundo dos adultos, mais requintado em nuances de crueldade. Apesar dos pesares, eu e minha família sobrevivemos, e encontrei recursos internos para aprender a viver em um lugar que me dizia o tempo todo que há brasileiros, “sudestinos”, supostamente mais dignos de respeito e orgulho pelo estado onde vivem. Com isso, cresci sem me sentir conectada a lugar nenhum, pois não pertencia a São Paulo, tampouco me sentia conectada à Bahia, terra que, naquele momento, não conseguia estar próxima pra me nutrir de forças e me ajudar a me defender de algum modo da exclusão. A Bahia, pelo contrário, significava o motivo pelo qual eu não era incluída em nada no contexto em que vivia, por isso, por muito tempo, eu detestei ser baiana. Por vezes, vejo essa experiência em brasileiros que imigram e passam a falar mal do Brasil, a terem vergonha de serem brasileiros, quase como um modo de negar o motivo pelo qual sofrem inúmeras violências ao serem sub-cidadãos em países do Global Norte. Ao conversar com amigos imigrantes no exterior, passei a reconhecer que vivi mais da metade da minha vida como uma estranha em meu próprio país. Essa vivência se tornou mais intensa ao me mudar para o Rio Grande do Sul para cursar o doutorado. Lá, pela primeira vez, entendi que o recorte da minha exclusão não era apenas ser nordestina, mas também minha face “exótica” aos olhos de um povo branco, de descendência alemã e italiana, em sua maioria. Meu rosto revela olhos da minha descendência indígena, nariz da descendência negra, pele menos retinta da descendência branca. Essa mistura toda que faz muitos dizerem: “Você é bem brasileira, bem tupiniquim, miscigenada”, em nenhum momento da minha vida me trouxe uma sensação de pertencimento e, até hoje, eu sequer sei responder qual cor tenho nos questionários sócio-econômicos. Parda? O que é isso? Parece que ainda não surgiu a categoria que abarque o fato de ser “bem brasileira, tupiniquim, miscigenada”, para que eu possa finalmente entender qual a minha cor. Por fim, a leitura que alguns fizeram de mim no sul do Brasil era de que eu era venezuelana. Cabe lembrar que, com a crise na Venezuela, muitos venezuelanos imigraram para o sul do Brasil, e lá passaram a receber um incentivo financeiro do governo rio grandense, o que gerou um conflito entre o povo nativo vulnerável  sócio-economicamente que não se via recebendo o mesmo incentivo e “perdendo” dinheiro para imigrantes, além do conflito xenofóbico em si.  O fato é que eu percebi, através de um alerta de um amigo, que eu era seguida no mercado que frequentei por 4 anos e meio. O segurança me seguia a uns dois metros de distância e só parava quando eu chegava no caixa e pagava minhas compras. Certa vez, falei pra ele “Não vou roubar, senhor, pode ficar a uma distância maior de mim, por favor?”. A resposta foi: “Estou fazendo meu trabalho, senhora”. Nesse dia, liguei para a ouvidoria do supermercado e fiz uma queixa do ocorrido, mas jamais tive resposta além de: “Vamos avaliar sua reclamação e daremos um retorno via e-mail”. Esse e-mail, por razões quase óbvias, jamais recebi. No Uber, sempre ouvia, todos os dias, “tu não é daqui, né?”, “ah, tu é da Bahia? É verdade que as mulheres baianas são quentes?”. Também ouvi dentro do meio acadêmico, uma pessoa próxima de mim e de mais dois nordestinos, comentar que “acima de São Paulo os brasileiros parecem ter déficit cognitivo”. Naquele estado, também compreendi que eu não era mais a “baiana” caricata dos paulistas, mas a “brasileirinha”, por ser de fora do Rio Grande do Sul. E rapidamente entendi que esse termo não era um elogio, mas uma associação ao famoso “jeitinho brasileiro”, corrupto. Foi bastante confuso ouvir pela primeira vez: “Olha o brasileirinho ali furando a fila, moça!”, “Isso é coisa de brasileirinho corrupto”. Pois bem... não foi sem dor que vivi tantas experiências de desrespeito, racismo e xenofobia em meu próprio país, me fazendo sentir que era sub-cidadã o tempo todo. Se refletirmos sobre o que Milton Santos, geógrafo baiano brilhante, diz sobre o território ser fruto de relações sociais, econômicas e raciais travadas nele, quem nesse país é de fato tratado como cidadão? Certamente poucos... uma gigantesca maioria de pessoas que, como eu, não sabem sua cor, os negros, os indígenas, as pessoas em vulnerabilidade sócio-econômica, os LGBTQIA+, as pessoas com deficiência,  os  vistos como "loucos", é muita gente que não é tratada como cidadã em sua própria terra. Pessoas que não tem direitos civis mínimos resguardados. E dói ainda mais saber que muitos vivem isso em quaisquer estados brasileiros. Se eu tenho inúmeros privilégios em vários estados por ser lida como “branca” em alguns deles, uma maioria do meu povo não tem privilégios em lugar nenhum. Ou seja, muitas pessoas têm na cor da pele, na etnia, no gênero, na classe social, na identidade de gênero, na  orientação sexual, as marcas da interdição de habitar e viver em seu território de modo digno. Quando falei sobre isso para algumas pessoas, comumente ouvi que estava exagerando ou tendo percepções equivocadas, marcadas por algo muito “subjetivo”. Felizmente tive meu oásis, alguns poucos amigos rio grandenses e de outros estados, também vistos como “brasileirinhos”, gente que também sentiu na pele a experiência de habitar sem habitar uma parte do território brasileiro. Lamento que muitos não se conscientizem, dado o lugar de privilégio que ocupam, que reproduzem a experiência excludente da colonização com os povos daqui de dentro mesmo. Como diz Paulo Freire: “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor”. E assim se travam lutas por poder e reprodução da exclusão dentro do nosso país, com muitos se sentindo mais “parecidinhos” com norte americanos e europeus, como se isso fosse um marcador de aceitação e validação muito nobre e digno. Penso que é urgente conhecermos a nossa história de país até hoje “colonizado” de diversas formas, para desconstruirmos os processos colonizadores que seguimos reproduzindo todos os dias entre nós mesmos. Hoje acredito que isso é uma utopia, mas o que seria de nós sem as utopias? Isso me lembra de uma fala do filme Bacurau: “Quem nasce em Bacurau é o que? – É gente”. Eu poderia fazer uma defesa calorosa de que quero ser vista como gente apenas, pois isso é o ideal. No entanto, como estamos bem distantes do ideal, desejo ser respeitada como gente nordestina, baiana e soteropolitana. Hoje, para minha alegria, tenho um orgulho “da porra” de ter nascido nessa terra linda que se chama Salva(dor), e de ter vivido meus primeiros anos de vida no sertão baiano, onde passei pelas experiências mais ricas da minha vida.  No fim das contas, a maior das minhas utopias ainda é viver em uma sociedade que valide, promova e integre o reconhecimento tolerante das diferenças com o amor por toda forma de vida, não apenas a humana. Como diz meu conterrâneo Jorge Amado: “Na vida só vale o amor e a amizade. O resto é tudo pinóia, é tudo presunção, não paga a pena...”

Texto originalmente publicado no Facebook e replicado com autorização da autora