A persistência da memória

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  • Paulo Sales

Publicado em 13 de julho de 2020 às 05:00

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O ator Jacques Perrin em cena de Cinema Paradiso, filme de Giuseppe Tornatore  (foto/divulgação) Numa das cenas finais de Cinema Paradiso, o personagem principal, Totó, retorna à cidadezinha natal na Sicília depois de 30 anos. Está lá para o enterro do velho amigo, o projecionista Alfredo, que inoculou nele o amor pelo cinema. É um reencontro comovente com um passado no qual Totó foi muito feliz, mas que julgava sepultado. Ao rever as filmagens antigas de um grande amor perdido, ele diz à mãe: “Sempre tive medo de voltar. Agora, após tantos anos, achei que estava mais forte, que tinha esquecido muita coisa. No entanto, está tudo diante de mim, como se eu tivesse ficado sempre aqui”.

Na sequência, Totó assiste à sequência de beijos proibidos, extirpados dos mais diversos filmes por um padre carola, e a emoção faz com que desmorone em lágrimas. É uma pequena obra-prima esse filme de Giuseppe Tornatore, que demonstra a capacidade que tem a memória de conservar a nossa essência, mesmo com a erosão causada pelas dores e intempéries de décadas etéreas e fugidias.

Falei um pouco, na crônica da semana passada, de como essas intempéries deixam marcas imperceptíveis a olho nu, embora sejam profundas e perenes. Volto ao tema porque a persistência da memória – que Dalí retratou com maestria em seus relógios disformes – é algo que me intriga e me comove. São muitas as minhas madeleines, o singelo biscoito mergulhado em chá que desenrola o novelo de reminiscências na obra-prima de Proust, Em Busca do Tempo Perdido. Às vezes uma foto, uma carta, os versos de uma canção esquecida desatam um nó, acendem uma fagulha, e me deixo levar pela correnteza do fluxo de consciência rumo ao passado remoto.

Revisito as casas onde morei na infância. Embarco com minha família no Fusca em que viajávamos para a cidadezinha onde minha mãe nasceu. Revejo meus pais ainda jovens e meus irmãos ainda crianças. Reencontro as primeiras namoradas, revivo as farras com os velhos amigos. Observo a mim mesmo entusiasmado com antigas aspirações literárias e com os escritores, músicos e cineastas que contribuíram para a minha formação. Enfim, sou invadido por essa massa espessa da qual somos feitos. Vinte, trinta, quarenta anos ganham a consistência de minutos.

Em A Casa das Belas Adormecidas, de Yasunari Kawabata, um personagem reflete: “Talvez, no ser humano, memória e reminiscências não pudessem ser definidas como próximas ou distantes unicamente por ser sua data antiga ou recente. Pode acontecer que, mais do que o dia de ontem, os acontecimentos da infância, sessenta anos atrás, tenham ficado guardados na memória e fossem recordados de uma forma mais nítida e mais viva. Isso não acontece com mais frequência na velhice?”

O fato é que, em dado momento da vida, torna-se impossível não sentir a pressão do compositor de destinos, como bem definiu Caetano, sobre nossos ombros. As memórias nos vergam como fardos e é fundamental sabermos assimilar bem essa overdose de passado. Como disse Cortázar em O Jogo da Amarelinha: “Vaidade de crer que compreendemos as obras do tempo: o tempo enterra seus mortos e guarda as chaves. Somente nos sonhos, na poesia, no jogo, aproximamo-nos às vezes do que fomos antes de ser isto que ninguém sabe se somos.”