A peste é ficar sem a alegria da bola em jogo

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  • Paulo Leandro

Publicado em 8 de abril de 2020 às 09:14

- Atualizado há um ano

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A vida em isolamento impõe algumas lacunas, mas nenhuma parece ser maior que a do velho e bom fútil-ball. Mesmo distantes dos espetáculos culturais contemporâneos, os jogos preenchiam uma parte considerável do nosso ser-no-mundo.

Foi o jeito amparar-me na leitura de um goal-keeper, um guardião da meta, nascido na Argélia, autor de um livro apropriado para o momento atual de enfrentamento do maior e ao mesmo tempo menor adversário da espécie humana desde os hominídeos.

Este goleiro é o escritor Albert Camus (você pode ler Cami). Ele escreveu A Peste, entre outros clássicos existencialistas, mas não jogava no time de Sartre, integrante do Partido Comunista.

Uma dose de dez páginas diárias de Cami é suficiente para ir fazendo alguma associação com o nosso atual cotidiano de quarentena, enquanto contamos os mortos e os respiradores mecânicos.

Nossa torcida, tão vibrante, imbatível e amorosa, hoje é para chegar a noite sem ter contraído o vírus, um bichinho tão pequeno, praticamente um nada, mas tão poderoso a ponto de machucar nosso pulmão e impedir a pessoa de respirar direito.

Como é frágil nossa defesa! Nosso Bigode, ali pelo lado esquerdo, deixa Gighia livre para marcar o segundo gol uruguaio. Barbosa, o goleiro preto, pegou a culpa. Juvenal, morto aqui em Jauá, por outro tipo de vírus, o da insensibilidade, também está no lance.

E se nunca mais pudermos adentrar o solo sagrado do Monumental Manoel Barradas? E o nosso Onze, em campo, a torcida gritando Negô, Negô, todos os detalhes de uma topofilia (amor ao lugar) estão agora guardados na memória ou no coração.

O mesmo vale, claro, para outras torcidas, mas a proposta de imparcialidade não conta para colunas. Compartilho, no entanto, a saudade sentida por Cristóvão Contreiras, Henrique de La Torre e tantos outros tricolores.

Gente saudosa e amante de suas cores o suficiente para ficar vendo replay de jogos históricos, como forma de não morrer antes da hora, ou ao menos manter na brasa a fogueira de São João semiapagada por Tanathos, com sua foice afiada.

A mãe de Guardiola morreu, Jesus e Dibala pegaram a doença, e tantos outros ainda vão contraí-la nestes meses de maio ou abril, como está em Profecias, no link https://www.youtube.com/watch?v=htfg93q75Pw

Voltando às páginas de A Peste, foi Cami, o goleiro, quem pensou: “tudo o que sei sobre a moral e os homens eu devo ao futebol”. Galera, foi um prêmio Nobel de Literatura quem deu esta moral ao nosso fútil ball!

O corona é o campeão, pois o brasileiro é, antes de tudo, um irresponsável, um estúpido, um elo perdido entre os pré-históricos e o homem contemporâneo, um ser desprezível capaz de permitir a escalação de um scratch tão perverso, capaz de destruir o próprio país.

Mas tem este lado bom, doce, de se distrair com um brinquedo tão interessante... capaz de gerar num dos maiores gênios do texto do mundo esta percepção de estar diante de uma aula de humanidade, quando via ou participava de uma partida.

Coube a um acidente de carro levar Cami do nosso convívio, ficaram A Peste, O Estrangeiro, A Queda, e tantas preciosidades, mas ele compreenderia esta saudade imensa da bola rolando, do placard em movimento, o narrador, o árbitro, o goleirão como ele foi...

Paulo Leandro é jornalista e professor Doutor em Cultura e Sociedade.