'A PM da Bahia é racista', diz integrante do Fórum Popular de Segurança Pública

Movimento Negro considera agressões da PM como tortura e incentiva a denúncia do cidadão

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  • Mario Bitencourt

Publicado em 6 de março de 2020 às 06:00

- Atualizado há um ano

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A violência sofrida por sete homens e um adolescente durante abordagem da Polícia Militar na localidade do Estica, no bairro da Liberdade, em Salvador, é típica de crime de tortura, na avaliação de entidades que lutam contra a violência policial e combatem o preconceito social e racial.

“Esse caso se trata de tortura e assim tem de ser nomeado. É diferente de ação mais truculenta durante o Carnaval. Ali, as pessoas não tinham como reagir, estavam presas, encurraladas”, disse Wagner Moreira, do Coletivo Ideas e do Fórum Popular de Segurança Pública da Bahia.

Para Moreira, é preciso que a PM mude sua forma de atuação durante as abordagens. “Mas é uma mudança geral, não qualquer coisa. Esses casos que temos visto acontecer esse ano e em anos anteriores só reforçam a ideia de que os métodos de abordagem da PM da Bahia estão ultrapassados”, afirmou.

A PM da Bahia age com preconceito social e de cor, na opinião de Moreira:“Essa forma de abordagem não ocorre em bairros nobres, com Pituba, Barra, Horto. Jovens brancos e filhos de ricos não sofrem o que esses jovens sofreram, e quando algum excesso ocorre nesses locais a repercussão é bem maior. A PM da Bahia é racista”. dizMas a situação também está mudando para melhor nas áreas onde o Estado se faz presente quase somente pela força policial, ao menos no que se refere às denúncias de casos como estes, que chegam ao público em geral por meio de filmagens realizadas pelos próprios moradores.

“É preciso que a sociedade civil utilize celulares como forma de se resguardar da violência policial, e também é preciso que o Estado identifique e puna quem faz ameaças a quem se utiliza desse recurso tecnológico para denunciar os casos. Nos preocupamos muito também com as pessoas que filmam”, comentou.

Moreira informou que outros casos de violência policial estão sendo avaliados por ele e integrantes do Coletivo Ideas. Nesta quinta-feira (5), eles receberam três vídeos de ações que resultaram em mortes - o chamado 'auto de resistência'. Uma das ações ocorreu em conjunto habitacional do Minha Casa, Minha Vida, em local não identificado.

É preciso haver punições mais severas aos policiais que cometem crimes do tipo, afirma Moreira: “Pelo que temos acompanhado, os policiais envolvidos em situações semelhantes têm apenas sido afastados das atividades por 60 dias, e eles voltam pra rua sem sequer passar por cursos de reciclagem”.

Casos frequentes

O advogado Jerônimo Mesquita, presidente da Comissão dos Direitos Humanos da seção baiana da Ordem dos Advogados do Brasil, se preocupa com a constância dos casos de violência policial. “Sabemos que há outros casos, mas esse é o segundo em menos de um mês”, disse, ao lembrar do adolescente espancado por conta do estilo de cabelo.

Para Mesquita, o comando da PM só pune quando tem repercussão:“Mas tem corporativismo na PM, isso é uma questão histórica, não é de governo atual nem de gestões anteriores ao de agora. E só estamos tendo mais respostas porque os tempos são outros, há dez anos, quando ocorriam situações como essa ou piores não se tinha um celular para filmar, e hoje por conta disso os abusos estão mais visíveis”, analisaO advogado informou que vai reunir ainda a Comissão de Direitos Humanos da OAB-BA para discutir o assunto. “O importante é que ao menos nesse caso as providências já foram tomadas, mas reforço que isso ocorreu por conta da repercussão do caso, há outras situações piores que levam anos e não resolve nada”, afirmou.

Segundo a Aspra (associação que representa PMs e Bombeiros), a defesa dos policiais presos por conta das agressões está sendo feita pelo advogado Dnoemerson Nascimento, com quem o CORREIO tentou contato, mas ele não atendeu as chamadas ao celular e nem deu retorno até a última atualização desta reportagem.

Bicho feroz

Ao analisar o caso, o especialista em segurança pública e coronel aposentado da PM, Antônio Jorge Melo, coordenador do curso de direito da Faculdade Estácio/FIB, disse que PMs que agem de forma violenta já são assim em suas relações pessoais, e quando colocam a farda da corporação e andam armados se sentem emponderados.“Precisamos entender é que o policial é um cidadão fardado, não foi a polícia que o transformou assim. Se ele é intolerante, ele o é nas suas relações pessoais. O fato de estar armado só faz ele faz ficar empoderado, ele vai fazer certas coisas que não fazia antes, porque acha que não tinha respaldo. E a polícia age buscando coibir esses tipos de comportamento”, disse Melo, que já foi corregedor da PM.Melo observou que “espancar não é técnica de abordagem, e reflete um descrédito do policial com relação ao sistema criminal. Isso não se aprende na PM”, mas disse que abordagens mais brandas não impõem respeito ao policial.

“Quanto um policial aborda um cidadão de forma muito educada, o pessoal não leva fé, isso é um problema cultural nosso, da baianidade. Temos tendência em não respeitar quando alguém faz abordagem de forma educada, somente quando age com determinado nível de força. O problema é o limite do uso legal da força”, declarou.

A abordagem, ele explica, tem os níveis de graduação: “pode ser verbal, interação física ou o uso letal, vai depender da situação em que o fato ocorre. Evidentemente, numa abordagem preventiva, não vai abordar força máxima, é uma evolução. E acho positivo quando o cidadão denuncia os abusos”.

Apurações

O Ministério Público da Bahia (MP-BA), por meio do promotor de Justiça Marcelo Santos Aguiar, coordenador do Grupo Especial para o Controle Externo da Atividade Policial (Gacep), declarou que foi instaurado procedimento administrativo para acompanhar o andamento do inquérito policial militar, cuja atribuição é da Corregedoria da Polícia Militar.

O promotor afirmou que outras situações de denúncias têm chegado ao conhecimento do MP-BA, e que o uso de celular para gravar os abusos é essencial para comprovar as irregularidades.“Diversas situações que chegam, principalmente através da Central de Flagrantes, noticiando agressões policiais aos conduzidos. Sem filmagem (vídeo) ou outro tipo de denúncia, fatos desta natureza não chegam ao conhecimento desta instituição”, afirmou.O defensor público do Estado da Bahia, Maurício Saporito, declarou que “há outras situações que foram registradas em vídeo e fomos procurados para fazer a interlocução com os órgãos de segurança pública, como a participação na formação dos policiais militares”.

“Já fomos convidados para participar do curso deles. Fazemos todo o acolhimento com as vítimas, buscamos promover a educação em direitos com o conjunto da população e participar mais quanto possível da formação dos policiais para que situações como essa não se repitam”, disse Saporito.

O defensor afirmou que “o comando da PM tem sido bem solícito para as demandas da Defensoria”. Quanto à punição, ele frisa, “cabe ao órgão do estado resolver conforme as provas que forem produzidas nos processos administrativos disciplinares”.

“A gente acompanha junto à vara de prisão em flagrante todos os casos, as notícias tanto de violência policial como de qualquer outra. Fazemos monitoramento, coletamos dados, enviamos para os órgãos [competentes] e realizamos toda parte assistencial (e) jurídica que pode ser feita”, completou.

A Defensoria Pública da Bahia informou também que atua de forma preventiva. No ano passado, por exemplo, o órgão lançou a cartilha sobre abordagem policial, que detalha quais são os direitos e deveres dos cidadãos e da polícia durante uma abordagem.