‘A psicóloga da escola chamou meu pai porque eu era afeminado’

De cada dez casos de suicídio na Bahia, oito são de homens. Especialistas apontam relação com masculinidade tóxica

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  • Thais Borges

Publicado em 25 de setembro de 2021 às 07:00

- Atualizado há 10 meses

. Crédito: Foto: Shutterstock

Conrado*, 33 anos, tentou cometer suicídio na adolescência. Com a criação em uma família muito patriarcal, se entender como um homem gay não foi um processo fácil. Além disso, sofreu abuso sexual na infância, vítima de um primo que frequentava sua casa.

"Existia uma homofobia tão grande que era uma coisa monstruosa para mim. Quando comecei a ser assediado sexualmente, embolou uma coisa na outra. Foi uma violência muito grande", diz. 

Em meio à discussão sobre o mês de prevenção ao suicídio, há uma realidade nem sempre percebida: homens se matam mais do que mulheres e, em muitos casos, o machismo nem mesmo lhes permite pedir ajuda. Em 2020, houve ao menos 680 suicídios na Bahia, de acordo com um levantamento divulgado esse mês pela Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais do Estado (SEI). Oito em cada dez vítimas - 82,6% do total - eram homens. 

Leia a reportagem principal: Machismo que mata homem: eles são oito em cada dez vítimas de suicídio na Bahia

Leia o depoimento dele na íntegra

“Fui criado numa família de fazendeiros, que é assim há muitas gerações. Eram aquelas pessoas mais brutas. Havia uma homofobia tão grande que era uma coisa monstruosa para mim. Tinha uma coisa de as pessoas ligarem o homossexual ao pedófilo e isso era bem marcante pra mim. Ainda criança eu não entendia, mas em um certo momento, na puberdade, percebi realmente que a figura feminina não me atraía. Essas coisas foram gerando uma angústia muito grande em mim. Quando eu tinha 9 anos, comecei a ser assediado sexualmente por um primo que frequentava muito a minha casa. Para mim, esse foi o momento em que embolou uma coisa na outra. Já tinha aquele arquétipo de que o homossexual era pedófilo, aconteceu comigo (o abuso) e minha mente ficou muito confusa. Minha família era extremamente patriarcal, tanto que eu lembro de, na minha infância, brincar com as Barbies de minha irmã. Meu pai descobriu e teve que dar todas as Barbies para uma prima. 

Eu comecei a ficar deprimido e começaram  a acontecer muitas coisas na minha família. Meu pai é extremamente agressivo, alcoólatra e vieram coisas muito próximas de violência. Ele espancava meus irmãos na minha frente. 

Eu estudava numa escola e a psicóloga de lá chamou meus pais para ele passar mais tempo comigo, porque eu era afeminado. Eu era uma criança magra e fui começando a ficar obeso. Cheguei a ter 112 kg com 13 anos. 

Um pouco antes dos 13, lembro que aconteceu uma coisa relativa ao casamento dos meus pais. Quando eu cheguei em casa, eu peguei uma faca de comer, de serra normal, entrei no meu quarto, sentei e comecei a chorar. Me perguntava quando aquilo iria terminar. Comecei a fazer cortes no meu braço, como uma forma de lidar com a dor. Era meio que uma tentativa de tomar o controle do que estava acontecendo e tirar o foco da dor emocional. 

Eu pensava que a única solução era me matar. Já vinha acontecendo essa violência doméstica patriarcal, então para mim, esse estereótipo de masculinidade era muito bruto. Pensava: ‘meu Deus, o que será que há de errado comigo? Como é que eu sou isso? E por que meu primo fez isso comigo?’.    Fiz terapia por muito tempo, depois fiz psicanálise. Já quando tinha uns 18, 19 anos, fui contar à minha mãe e à irmã (sobre o abuso). A reação de minha irmã primeiro foi normal. Uma reação de raiva. Mas ela achou que era um primo e não era aquele. A resposta que ela me deu quando falei quem era foi de que ele tinha crescido na fazenda e isso era normal. Eu me senti extremamente desvalorizado. Mesmo com nossa relação próxima, como ela podia me dizer isso?

Em um dos momentos que quis terminar o corte, bateu algum tipo de sanidade no meu cérebro. Pensei: ‘eu posso fazer outras coisas, não preciso ficar aqui. Posso pedir para morar com minha madrinha, com minha avó, não preciso ficar dentro dessa casa’. Na minha cabeça, até prostituição passou. Que eu podia me prostituir, mas não ia deixar de viver por isso.Ainda passei um bom tempo me cortando, por mais de um ano. Até usava casaco para esconder os cortes em meu braço.

Até que aconteceu uma coisa. Um primo foi assassinado. Naquela fase de luto, eu fui para um almoço na casa de minha avó e ela deu um tapa na mesa e falou ‘eu prefiro um neto morto do que um neto mariquinha’. Aquilo foi diretamente para mim. Eu saí da casa dela e passei anos sem retornar. 

Uma coisa que me deu força foi o fato de que minha irmã saiu do armário como bissexual. Assim, eu comecei a viver e conhecer pessoas. Percebi que eu não era uma monstruosidade. Foi ficando mais fácil pra mim.Falar do assédio ainda é complicado. Não é confortável. Minha família continua sendo machista, mas minha mãe graças a Deus me aceita muito bem. Quando eu tinha 14 anos, eu disse que era gay. Ela me abraçou e disse: ‘eu sei’. Mas meu pai até hoje não tenho uma relação. A última vez que o encontrei foi em 2016. É uma coisa mútua. E não procuro, porque não me faz bem e ele não me procura. Faço análise desde os 17 anos. Já com 20 e poucos anos, fui diagnosticado com transtorno bipolar. Para quem está passando por uma situação como essa agora, eu diria ‘calma, vai passar. Eventualmente, você vai ficar bem’. Eu acho que o acolhimento é uma coisa séria e acontece muito. Quando você começa a conhecer mais pessoas homossexuais, traz um alívio muito grande. É extremamente importante construir um sistema de apoio que saiba lidar com esses assuntos. 

Ser homem não significa que você tem que brincar de carrinho, de guerra ou que você tem que se vestir com azul. Qualquer pessoa tem um pouco de cada gênero. E deixe seu filho explorar, porque isso não significa que ele vai ser gay, se o seu temor for esse. Esses meninos serão adultos melhores se nada for proibido nesse sentido”.

*Nome fictício