A redenção do passado em ‘Dor e Glória’

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  • Paulo Sales

Publicado em 8 de julho de 2019 às 05:00

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A memória pode ser tanto um fardo como uma bênção: imobiliza ou impulsiona. É um imenso legado que trazemos a reboque, feito de perda, saudade, remorso, frustração. Mas também de afeto, prazer, autoconhecimento. O cineasta Salvador Mallo, personagem de Antonio Banderas em Dor e Glória, de Pedro Almodóvar, se desloca continuamente entre esses dois polos, transitando entre a letargia acentuada pela depressão e traumas de infância (o sentimento de rejeição, o alvorecer do desejo) e a necessidade de abandonar a inércia criativa. A volta ao mundo real se dá a partir de centelhas que se iluminam em momentos cruciais: o reencontro com seu ator-fetiche, com quem reata depois de décadas, o retorno inesperado de um antigo amor, um quadro encontrado ao acaso que desvela algo de muito secreto e valioso. (Foto: Divulgação) O passado é fundamental para conferir algum significado ao presente. Porque, tanto no caso de Salvador quanto para qualquer um de nós, a essência está lá. É o alicerce sobre o qual foram edificadas as decisões equivocadas, os rompantes que levaram a erros irreversíveis, o silêncio quando o grito se fazia necessário. Não adianta enterrar tudo, como caixões de chumbo cobertos por toneladas de concreto em Chernobyl. A chaga permanece represada, até um dia transbordar e fazer um estrago enorme. Ao retomar as rédeas da própria existência, Salvador faz das suas chagas a matéria-prima do seu novo filme.

Dor e Glória é formado por diferentes camadas removidas aos poucos, como uma cama que vai sendo despida de edredom, colcha e lençol, até revelar o colchão nu. Entre uma e outra camada, descortinamos momentos de esplendor intenso, dos quais o ponto mais alto são as conversas de Salvador com a mãe doente. É quando o não-dito finalmente cai por terra e fica evidente a não-aceitação, por parte dela, do fato de o filho ser gay.

Assim como em Julieta, seu pungente trabalho anterior, Almodóvar se mostra mais contido, sem a exuberância estética do passado. Isso talvez se deva ao caráter autobiográfico da narrativa e, consequentemente, a um certo pudor em se mostrar por inteiro. O ritmo é lento, contemplativo, às vezes claudicante, como se acompanhasse a montanha-russa emocional do protagonista.

Almodóvar não é mais o jovem e irrequieto expoente da Movida Madrilenha, que desbancou a Espanha conservadora e fascista e instaurou a lei do desejo num dos países mais belos e singulares do mundo, amado por Hemingway por seus vinhos, touradas e pessoas de brio. Provavelmente seu auge ficou para trás, naqueles dramas deliciosamente desbragados – e profundamente afetivos – que são suas obras maiores: Carne Trêmula, Fale com Ela e Tudo Sobre Minha Mãe. Mas continua sendo um cineasta essencial, como Dor e Glória pode comprovar. Parafraseando Caetano, Almodóvar é um homem velho que deixa vida e morte para trás. E, para nossa sorte, continua servindo de farol.