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João Gabriel Galdea
Publicado em 23 de janeiro de 2022 às 06:00
- Atualizado há 2 anos
Eu não acredito que Ivete Sangalo fez uma palhaçada dessa com o povo de Conceição da Feira. Que palhaçada? Talvez nem ela saiba, mas o povo da simpática cidadezinha no Recôncavo lembra bem, mesmo passados quase 20 anos do ocorrido. >
Era final de setembro de 2004, reta final da eleição, quando o então prefeito Antonio Alves Serra, o Serra, buscava em ações de marketing ousadas uma tábua de salvação para garantir a reeleição. Sua popularidade estava em baixa e o sentimento geral era de que o candidato do PP vinha bem atrás na disputa contra Chico Guedes (PFL) e Val de Maninho (PT).>
Mesmo com a máquina na mão, era nítido que sua campanha precisaria criar um fato novo (ou vários) para virar o jogo nas urnas. Um jingle chiclete, um show de estourar a boca do balão (Ivete, em tese) e, claro, o próprio balão, foram as cartas na manga usadas por ele.>
Jingle e balão >
A primeira investida foi bem sucedida: Serra escolheu ‘Flor do Reggae’, hit de Ivete Sangalo, para adaptar e usar como jingle. “Grudou na cabeça da galera, todo mundo sabia cantar”, relata o cineasta, escritor e produtor cultural Marvin Pereira. >
O sucesso empolgou o prefeito-candidato, e o sonho de renovação do mandato voou alto. Para representar essa ascensão, Serra lançou mão de um balão (daqueles grandões) para obter mais visibilidade. E, de novo, acertou em cheio. >
“Ele fez um puta investimento num balão sobrevoando a cidade com o nome ‘SERRA 11’, jogando papel picado… Aquilo para a cidade, naquela época, era algo de outro mundo”, avalia Marvin.>
Outra conceiçoense que nos ajuda a contar essa história é Talita de Lima, estudante de Publicidade de 27 anos que, naquela eleição, ainda era uma garotinha, mas também lembra do “balão jogando santinhos pela cidade” e otras cositas.>
Com a campanha parecendo ir de vento em popa, o prefeito estava empolgado, e era nítido isso em suas falas de palanque. “Ele passou a campanha dizendo que iria trazer Ivete Sangalo no último comício dele”, relembra Talita, citando os relatos dos mais velhos.>
Grande dia >
Bom, enfim chegou o grande dia. O palco do showmício (que era permitido na época) foi montado em frente à prefeitura. Ivete, já naquela época estrela de primeira grandeza da música, iria tocar na cidade de cerca de 20 mil habitantes, e quase ninguém duvidava que depois do apoio da cantora, Serra estaria reeleito.>
“Começou tudo bem, uma banda aqui da cidade se apresentou, e quando terminou a outra banda que iria tocar, Ivete não tinha chegado ainda. Foi quando começou a enrolação, dizendo que tanto uma outra atração quanto Ivete estavam chegando”, conta Talita.>
O locutor, que em nenhum momento anunciou que teria show de Ivete, mas apenas se referia à “grande atração” que todos aguardavam, começou a pedir calma. A cada minuto, os ânimos se exaltavam mais, e o zum zum zum nos bastidores logo chegava aos ouvidos de um e de outro na plateia, e ali viralizava. >
“Um tempo depois, justificaram que Ivete estava demorando porque estava vindo dos Estados Unidos. Se não me engano o próprio candidato subiu no palco para dar essa informação”, diz Talita, sem muita certeza.>
Marvin cita detalhes extras: “Quando a última banda já tava dizendo que o show tava acabando, e Ivete ainda não havia aparecido, as pessoas começaram a achar estranho. Vez ou outra, entoavam ‘Ivete, cadê você, eu vim aqui só pra te ver’. O locutor, acho que sem saber o que fazer, começou a inventar uma fanfic, de que Ivete tinha se atrasado pois ela estava chegando de Nova York, mas que ela tava vindo de helicóptero e que pousaria no estádio municipal”. >
A informação de que Veveta chegaria no estádio deu a largada para uma São Silvestre improvisada até a praça esportiva, a 10 minutos do showmício. >
“No que ele falou isso, foi uma correria em direção ao portão do estádio. Quando o locutor viu que a praça esvaziou um pouquinho, ele avisou: ‘gente, por problemas técnicos, Ivete não poderá realizar o show aqui hoje, mas amanhã a banda X vai fazer uma tarde de autógrafos pra vocês no Zangão”, reproduz Marvin, citando um bar famoso da cidade.>
Revolta popular >
Zangado, injuriado, cego de ódio, os zamuris (como Ivete chama seus fãs) não iam deixar essa frustração passar batida. Mas não mesmo!>
Assim que chegou a má notícia no estádio, a galera voltou correndo, no breu noturno, para a frente do palanque.>
“A essa altura, o candidato já tinha sumido. Aí o povo começou a gritar, jogar lata, garrafa e pedra no palco, e quebraram o palco todo. Lembro que daqui de casa, que fica a uns 10 minutos, dava pra ouvir as pessoas gritando”, reconstrói Talita.>
Marvin também descreve o cenário dantesco: “A população revoltada com o ‘falso show de Ivete Sangalo’ invadiu o palco, arrancou e estourou todas as bolas, derrubou os instrumentos, queriam bater no locutor. Foi uma correria louca, começaram a tacar pedra, e começou uma briga generalizada”.>
A Revolta dos Zamuris foi então tomando conta das ruas, quase ganhando ares de revolução para derrubar o governo. “As pessoas começaram a ir embora, e foram pelas ruas fazendo a maior zuada. Passando na frente do estádio, deram murros e chutes nos portões de ferro, que fazia um barulho gigantesco”, cita Talita, sem esquecer do desespero de quem tava mais perto e, assim como ela, não sabia o que tava acontecendo.>
“Lembro que os filhos das minhas vizinhas estavam na rua, e aí uma dessas vizinhas ficou assustada com todo o barulho, saiu aqui na nossa rua desesperada, chamando minha mãe. Saíram as duas de camisola, indo em direção à praça atrás dos filhos”, relata a universitária.>
Conhecida como Cidade Ternura, Conceição da Feira não teve dó do prefeito do balão, que voou lá pra trás na contagem de votos. Chico Guedes acabou eleito, com 39,69% da preferência popular (3.946), em votação apertada contra Val de Maninho, o segundo, com 38,21% (3.799).>
O pobi do Serra, infelizmente falecido em 2013 – o que nos impede de saber o que se passou na cabeça dele ao prometer Ivete na campanha –, terminou a corrida eleitoral de 2004 em terceiro, com 2.197 votos (22,1%).>
Procuramos a assessoria de Ivete para saber se a cantora lembra dessa história, e se foi de fato procurada para fazer rolar a festa da democracia em Conceição da Feira, naquele ano, mas não houve retorno até o fechamento da edição.>