A ronda da Irmã Dulce

Por Nair Moscoso

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  • Nelson Cadena

Publicado em 11 de outubro de 2019 às 10:04

- Atualizado há um ano

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“Espetáculo insólito assisti, certa vez, nas ruas de Salvador, numa hora bem tardia da noite. Era o dia das Mães, voltava para a casa no bairro de Itapagipe, após uma reunião social ao respeito... Antes de chegarmos em casa avistamos numa viela, novo movimento...O espetáculo que então assistimos foi indescritível... a famosa ronda noturna da Irmã Dulce. Em companhia de duas outras freiras e de um guarda noturno, ela sai à noite, em uma perua, fazendo a ronda pela cidade, a recolher os sem lar”.

“No seu micro-ônibus elas carregam...os abandonados de toda idade que vão encontrando nas ruas da velha Salvador, tão cheia de grandezas, tão cheia de misérias. E tais despojos humanos que não tem onde viver, que não tem trabalho, que não tem amor, são recolhidos carinhosamente...Naquela noite as pedras das ruas já não serão os seus leitos. Encontram teto e uma sopa quente para seus estômagos gelados e vazios. Manhazinha, são ajudados e orientados no sentido de arranjarem colocação. Às crianças ela distribui cadeirinhas de engraxate, frutas e quinquilharias outras para que possam trabalhar um pouco”.

“Aos doentes Irmã Dulce hospitaliza e depois leva para seu albergue, orientando-os, depois, numa ocupação na vida. Tal é a ronda noturna sublime da Irmã Dulce. Esta ideia lhe surgiu há 11 anos quando debruçada sobre a agonia de um pequeno moribundo anônimo. Um dia Irmã Dulce encontrou, casualmente, um pequeno jornaleiro tremendo à beira de uma calçada. De febre e de fome o pequeno tremia. E a freira levou-o para uma casa abandonada, tentando socorrê-lo, mas o pequeno morreu. E aí seu coração decidiu encontrar um abrigo certo para os doentes e desamparados que frequentemente são encontrados na noite”.

E eis que...após lutas incontáveis encabeça agora a obra do Círculo Operário. Os doentes que ela recolhe são considerados geralmente incuráveis que chegam dos confins do Estado e que não são aceitos em nenhum hospital. Atirados às sarjetas, ela os encontra e os recolhe...Seu pequeno hospital é tratado com asseio, desvelo e dedicação. Quando o diretor da famosa clínica Mayo dos Estados Unidos esteve na capital baiana ficou deveras impressionado com a obra da irmãzinha. O ano passado, quando lá esteve, ela lutava, porém, com as dificuldades mais tremendas, para que sua obra continuasse a viver e com ela os miseráveis vítimas das mais tremendas injustiças sociais”.

“Devia cerca de seis milhões de cruzeiros. E irmã Dulce, então, entre as lutas para angariar recursos, teve a ideia de filmar todas aquelas cenas de misérias e de abandono e passá-las nas telas de um aristocrático cinema, com entradas pagas que ela vendeu, uma a uma, na sociedade baiana. Seu coração cheio de amor e seu cérebro cheio de ideias faz-la sempre imaginar onde buscar auxílio. Seu plano foi partir para Brasília e passar para o então presidente Jânio Quadros, este doloroso filme, documentário humano de miséria... Foi quando este renunciou”.

Leio agora uma reportagem de O Globo...meus pensamentos deram um mergulho no passado...recordando aquela mulher feliz. Eu sou daquelas que creem no axioma: quem causa a alegria ou a tristeza, o prazer ou a dor, sente-as também. E a Irmã Dulce semeia felicidade”.

(Crônica da autoria da escritora Nair Santana Moscoso publicada na Revista Única em 1967.)