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A ruína das nossas utopias

  • Foto do(a) author(a) Paulo Sales
  • Paulo Sales

Publicado em 28 de novembro de 2022 às 05:09

. Crédito: .

Já vai alta a noite e escuto Yo Pisaré las Calles Nuevamente, minha canção preferida de Pablo Milanés, que deu adeus ao mundo na semana passada. Como outras do cantor e compositor cubano, esta me remete a um tempo de descobertas sentimentais e políticas que moveram o adolescente que fui. Meu irmão mais velho escutava com frequência as canções de Milanés no apartamento onde morávamos. Um tempo em que o aparelho de som Polyvox não parava de tocar na sala, minha família ainda vivia junta e meu pai ainda existia.

De certa forma, a morte de Pablo Milanés representa também o desmoronar de um jeito muito peculiar de pensar e agir no mundo. Tempo em que as utopias ainda não haviam sido substituídas pelo cinismo e pelo pragmatismo. Tempo de artistas como Victor Jara, Violeta Parra, Sílvio Rodríguez e Mercedes Sosa. Yo Pisaré las Calles Nuevamente fala abertamente do golpe militar no Chile, que depôs o governo legítimo de Salvador Allende para implantar aquela que foi provavelmente a ditadura mais sangrenta da história da América do Sul.

Por décadas, Allende representou o elo perdido de um socialismo de face mais humana ao sul do Equador. Ainda representa? Hoje, se não estou redondamente enganado (e posso estar, obviamente), não há mais espaço para utopias como a de Allende, muito menos para outras forjadas no decorrer do século 20. O socialismo real ruiu com a queda do Muro de Berlim, em 1989, mas já estava podre por dentro, como uma árvore consumida por cupins. Para nós, velhos animais de esquerda, resta a social-democracia, que já obteve resultados expressivos em diferentes partes do mundo.

Essas utopias, inocentes e fervorosas como um namoro de adolescentes, fazem falta. Aquela chama que nos permite acreditar que é possível um mundo mais digno e menos desigual. Utopias capazes de dar à luz clássicos como Canción Por La Unidad Latinoamericana, Gracias a La Vida, Te Recuerdo Amanda e até mesmo a nossa Pra Não Dizer que Não Falei de Flores. Canções de versos ingênuos e extemporâneos, mas ainda assim profundamente comoventes.

Creio que não há mais ambiente propício à proliferação de quimeras – e talvez seja melhor assim. É mais prático mudar de ideia, por considerá-la equivocada ou obsoleta, do que manter a todo custo uma velha paixão de juventude. Ou talvez nossas antigas convicções não façam mais sentido num mundo em que tudo que aprendemos a estimar se dilui inexoravelmente. Estamos menos emotivos e mais racionais. Mas por que ficamos assim? Nossas escolhas foram infundadas? Nossos oráculos nos decepcionaram? Não existem respostas fáceis.

De certo modo, a última eleição trouxe de volta o ambiente dos embates de outros tempos. A luta contra uma tirania em curso, o engajamento como meio de sobrevivência, o temor da derrota, a truculência campeando no lado oposto. O que parecia ser o fim da história – o triunfo definitivo das democracias liberais, inclusive no Brasil – desaguou em fundamentalismos, histeria, lideranças com viés autoritário e discursos que evocam o pior dos ismos do século passado. Ou seja, se as utopias não são mais possíveis, as distopias ainda são.

Ouço agora San Vicente, nas vozes de Milton e Mercedes. “No corpo e na cidade/Um sabor de vida e morte”. Volto a ser aquele garoto tímido que descobria as torpezas do mundo através de versos e canções. Forjado num ambiente de afeto e superproteção, havia em mim uma ânsia incipiente por fazer parte de algo muito maior do que o meu universo de classe média. Filho temporão de outra era, cheguei tarde ao planeta e tinha enorme dificuldade de me adequar à realidade do meu entorno.

Não pertenci a movimentos, não militei em partidos, não participei de grandes manifestações. Até porque sempre cultivei certa desconfiança diante de discursos extremistas, frases feitas e teses imperfeitas. Fui desde sempre um sujeito ensimesmado, envolto numa penumbra própria. Um teórico sem teorias, incapaz de me lançar à vida prática ou me engajar em grandes causas. Prossigo assim, testemunhando a existência como uma sentinela, contemplando as dores e delícias de sermos o que somos.