A sardinha e o dom de iludir

Tô com vergonha de pedir filé mignon de R$57 o quilo, até por telefone, e mesmo sendo para as minhas clientes

Publicado em 12 de setembro de 2021 às 07:00

- Atualizado há 10 meses

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Tenho me sentido constrangida mesmo entre quatro paredes quando consigo comprar orgânicos, meu queijinho mineiro especial, um pão artesanal de boutique, um café da Chapada ou até mesmo um vinho apenas okay.

Tô com vergonha de pedir filé mignon de R$57 o quilo, até por telefone, e mesmo sendo para as minhas clientes (sim, porque aqui em casa eu não banco). Até porque mesmo que você domine técnicas de redução de perda ou compensação com molhos, esse peso líquido vai ter uma redução aí próxima dos 20%, e na real aquele quilo vira 800g a 57 conto. 

A crise lá de fora fez morada também aqui dentro, e sinceramente, não tenho conseguido separar as coisas. Tento demover clientes que podem pagar R$ 110 por um quilo de filé de camarão para hambúrgueres de tilápia com compensação de batata, porque na minha cabeça esse dinheiro pertence a todos, só está mal distribuído. 

Do ponto de vista comercial, eu estou to-da errada porque não tenho nada que questionar as escolhas das minhas clientes, vai vendo que louca! A sorte é que eu cozinho para pessoas afins. “Certo” seria rodar na lógica mercadológica de alimentar a frágil saúde financeira de fornecedores, que ruim ou bom ainda petiscam mignon, mas é preciso alimentar principalmente a fome, a ética, a solidariedade.

Eu sei que não está fácil para ninguém porque quando o problema não é falta de dinheiro, é de sanidade mental, infelicidade, que também são outros tipos de fome, mas uma hora alguém tem que acender a luz da consciência que é pra gente poder se tocar que não existe felicidade no desequilíbrio, é lei do universo; e quem não consegue abrir mão de alguma coisa pelo bem comum que o faça pelo seu próprio bem, se melhor lhe convier assim posto e dito desta maneira. 

É isso. Comprar carne, postar foto em restaurante $$+ e coisas que tais, enquanto a gente tropeça cinco vezes na fome até a padoca da esquina tá deixando um gosto amargo na boca.  Não basta fazer caridade, é preciso ser solidária nas menores escolhas e ações secretas do dia-a-dia, sinto eu.

Tá, mas e a sardinha, Katita? A coluna tá acabando e até agora nada. Porque afinal de contas, a idéia era falar aos que tem sobrevivido de miojo e sardinha na doce ilusão de que é barato,  quando na verdade 84g de sardinha está para R$5 assim como 1kg está para x, o que significa que o preço do quilo da sardinha em lata está em torno de R$60, ou seja, mais caro do que o filé mignon, mores. E é exatamente esse dom de iludir, tão próprio da indústria alimentícia, que faz com que continuem lucrando alto mesmo na crise com ração humana. Era só uma questão de tempo até que todos os alimentos de supermercado fossem transgênicos e estamos quase lá, presta atenção.

Até bem pouco tempo o ovo, vulgo zoião, era uma opção barata, associada inclusive a comida de pobre. Não mais.

Com uma dúzia de ovos vermelhos (que se você prestar atenção agora são 10, aquele dom de iludir) a R$14 reais, até o ovo da mais infeliz das penosas ganha ares de nobreza. 

Com um potinho de manteiga de 200g a R$10 o jeito é se apegar com a margarina; e o que dizer de um frasco de 1 litro de óleo de girassol (que se você olhar direito são 900ml) um dos poucos disponíveis ainda não transgênico a dezenove pilas? 

E aquele discurso tão recente de pague mais e coma menos, priorizando orgânicos e alimentos de origem em favor de uma alimentação mais saudável vira romance, piada, proposta indecorosa e cai por terra, porque saúde não é mais prioridade; prioridade é sobreviver.

A realidade da geral que ainda tá podendo é o carro do ovo, a galinha envenenada (outra que tá pela hora da morte), café com serragem, pão sem miolo, óleo de soja, leite aguado,  macarrão Brandini, bolachão, o kitut Wilson, salsicha a granel, farinha vagabunda, flocão de milho (mas será possível que até a Coringa agora é T?), a seleta de legumes em lata, e com sorte uma bandeja com 4 fatias de mortadela ou peito de chester (alguém já descobriu que bicho é esse?); com mais sorte ainda 4 fatias de queijo mussarela medonho (com dois s mesmo) de R$56 o quilo, que a gente xinga o cabra que fatiou na lâmina grossa porque se fosse mais fina rendia o dobro de fatias e sanduíches, por conseguinte.

  Carne, nenhuma; merluza, foi-se o tempo. No mais, reaproveitamento de filtro de papel (isso é bom) e tala de fosco, dividir guardanapo ao meio e reza forte pro gás aguentar até o fim do mês.

E deixa os meninos dormirem até tarde para não precisarem tomar café - li neste mesmo jornal semana passada. Essa é a realidade dos mais favorecidos, porque os menos são aqueles que a gente tropeça nas ruas. E vai ficar pior.

A dica é fazer render pra adiar a fome, praticamente um milagre de multiplicação.

Farofa de ovo branco com um pedacinho de bacon ou meia linguiça calabresa só pra dar gosto, arroz enriquecido com xepa de feira; macarrão com salsicha, molho pronto e aquele queijo ralado tipo farinha; feijão donzelo, fritada de batata e cuscuz, minha gente! Cuscuz de milho. Com banana, com ovo, com margarina, com um taquinho de queijo, ou quem sabe, um rico cuscuz de sardinha daqueles que o povo chama de paulista e há quem faça até com camarão, veja só que coisa granfina!

Fato é que nestes tempos bicudos cuscuz de flocão transgênico com sardinha virou prato de festa nas mesas da classe média de outrora.

CUSCUZ GRANFINO DE SARDINHA EM LATA

Num fundo de panela refogue cebola, tomate, microcubinhos de cenoura, pimentão, pimenta dedo, milho verde, ervilha e azeitonas picadas em azeite de oliva. Por último as sardinhas em lata. Some o flocão de milho previamente hidratado e um pouco de caldo de legumes ou água fervente mesmo até ficar molhadinho do jeito que vc gostar. Acerte o sal, some um punhado de salsinha picada, e cubinhos de ovo cozido por 5 minutos em água fervente. Enforme em forma bem linda pra causar impacto (é trucão, lembra?), desenforme em prato de festa e ocupe o centro da mesa. Eu ouvi um amém?  

Kátia Najara é cozinheira e empreendedora criativa do @piteu_cozinhafetiva