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Da Redação
Publicado em 11 de agosto de 2019 às 05:00
- Atualizado há 2 anos
Tinha 20 anos e mais Castro Alves e Torquato Neto atravessados e trespassados no peito juvenil. Um na infância. Outro na adolescência. Estes caras lhe consumiram e lhe viraram de ponta cabeça, e lhe convenceram: o bom – mais do que ser feliz – era ser poeta, e mais nada, nada. Torpedeado por essas pedras basilares da poesia brasileira, deu uma de poeta para ver se sobrevivia. [Ele sobreviveu, graças aos rabiscos e reflexões lítero-jornalísticos que passou a cometer. O poeta, não. Jazeu para todo o sempre – mas deixou legado].>
Determinado, ele catou palavras que emulavam poemas em cadernos e papeis, e ‘editou’ o testamento de poeta natimorto. Aplicado, datilografou com zelo o material escrito em folhas de papel sulfite, usou fita crepe à guisa de brochura, e o transformou em livro – tosco, mas livro. >
Titulou a ‘obra’ (´Coragem, Coração’ – poemas/impressões/sentimentos/entre 1972 e 1974). Escreveu epígrafe (‘É preciso mais coragem para sujar esse branco, transformar esse branco, a palavra sai como uma punhalada, a poesia como punhal’), e dedicatória (‘à minha família, aos meus amigos, aos brasileiros, com uma enorme confiança no futuro’). >
Datilografei seis exemplares dessa coletânea de pretensos poemas, selecionei seis amigos que mereciam receber esse ‘presente’, e os enviei. Pedi aos selecionados diletos para guardá-los pelo tempo que pudessem. [Dessa meia dúzia de nomes, eu consigo lembrar apenas de dois: amiga que ora mora em Irecê-Bahia; e amigo, que, coisas da vida, vive nesta urbe na qual voltei a morar há três anos].>
Ao esmiuçar a memória, relembro: escrevera versos mezzo barrocos e, basicamente, panfletários, de forte teor inconformista. Era o auge da ditadura militar, e o rapazinho de 18 anos não tinha – e ainda não tenho – sangue de barata, logo disparava versos assim: ‘poeta/estandarte/e mestre sala/das dores do mundo/levanta o estandarte/e mostra as dores’. [É a primeira vez que leio este verso depois de quase 40 anos de tê-lo escrito, e o leio de maneira aleatória e apressada em página que logo volto a fechar, e que deixa as pontas dos meus dedos cheirando a mofo, e não tolero cheiro de mofo].>
Há algum tempo soube que este amigo ainda tinha um dos seis exemplares deste ‘livro’ e o guardava com zelo. Não demonstrei interesse, mas fiquei intrigado: como aquele objeto perdido na poeira do tempo me aparecia assim do nada? [Por esses dias, sabe-se lá o motivo, a curiosidade me arrebatou, e zapeei para R.: - Você ainda guarda aquela ‘coisa’? Ele disse que sim]. >
Fui pegar. Pedi saco plástico para protegê-lo da chuva fina. Na volta parei em lugar onde paguei o aluguel da casa onde moro – e lá esqueci o filho enjeitado. Só percebi o esquecimento horas depois. Pensei em largá-lo para sempre. Não podia fazer isso: o ‘livro’ não era meu, pertencia a meu amigo. Fui buscar.>
[Agora – quando escrevo este texto – olho para este filho enjeitado com estranhamento. Antes que caia na tentação de jogá-lo no lixo, preciso devolvê-lo ao dono sem demora].>