A vez que o erê da empregada de Jorge Amado carregou escritor no colo 

Promessa (feita por parenta) não cumprida por beneficiária causou confusão gigante na Casa do Rio Vermelho

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  • Da Redação

Publicado em 22 de agosto de 2021 às 05:10

- Atualizado há um ano

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Atuais livros de cabeceira de Pandora, que adora dar uns rolés pela Rua Alagoinhas

Sou um caçador de coincidências — Deus está nelas — e, por estarmos no mês de Jorge Amado (nasceu dia 10, morreu dia 6) e Caetano Veloso (níver dia 7), cruzei com uma que envolve ambos. Há 20 anos, quando o escritor nos deixou, Caetano terminava um show na Concha quando recebeu a notícia da morte de Jorge. Voltou ao palco para o bis e cantou ‘Milagres do Povo’, uma homenagem ao escritor e sua obra. 

“Quem é ateu e viu milagres como eu sabe que os deuses sem Deus não cessam de brotar”, introduz o compositor na canção que faz referências a Pedro Archanjo (Ojuobá), protagonista do livro ‘Tenda dos Milagres’.

Na ocasião, Caetano contou ao público que a música veio de uma pergunta que fez a Jorge no jornal O Pasquim, querendo saber se o escritor, que era ateu, tinha fé no candomblé. “Feliz ou infelizmente, eu não acredito porque sou materialista”, respondeu Jorge, antes de emendar: “Mas que eu já vi o candomblé fazer muitos milagres, isso eu já vi e são milagres do povo”. 

Chama a Neusa Pois bem, um dos relatos desses milagres encontrei em ‘A Casa do Rio Vermelho’, livro de memórias escrito por Zélia Gattai, mulher de Jorge. No capítulo ‘Os mistérios da Bahia dentro das portas’, a escritora narra a saga de Neusa, empregada recém-chegada à casa do casal, em meados dos anos 70. 

“Tipo franzino, Neusa era uma pessoa educada, discreta, inteligente. Quase perfeita no trabalho, com Eunice [outra empregada] ela me dava tranquilidade”, conta Zélia sobre os primeiros dias da moça no serviço.  Jorge e Zélia no jardim da Casa do Rio Vermelho, hoje um museu (Foto: Acervo A Casa do Rio Vermelho) A partir de agora, acho melhor a própria escritora desenrolar o causo — farei apenas alguns cortes pra adiantar o lado:  

“Ao receber o salário, certa manhã, Neusa saiu para depositar o dinheiro na Caixa Econômica. Foi e nada de voltar. Por volta das três da tarde, Eunice veio me chamar, olhos esbugalhados: 

— Corre, dona Zélia. Um homem trouxe Neusa, disse que ela estava perdida na rua. Ela está estirada na cama feito morta. 

Atirada a corpo morto em sua cama, Neusa não dava sinal de vida. Mandei chamar Aurélio [empregado], pedia-lhe que buscasse um médico, quando Neusa despertou e num salto, dando gargalhadas, pôs-se de pé em cima da cama. Não respondia às minhas perguntas, dizia coisas ininteligíveis. 

Alertado, Jorge apareceu para ver o que estava se passando. Ao ver Jorge, Neusa deu um salto, gritando: ‘Vovô, vovô, vovô...’ Antes que alguém pudesse impedi-la, ela correu para Jorge, agarrou-o pelas pernas, levantou-o e se pôs a cantar e a dizer coisas, com ele nos braços, suspenso. Eu nem precisava sair de minha casa para presenciar milagres, os chamados mistérios das ruas da Bahia. Não podia acreditar que uma criatura magra e frágil como Neusa tivesse força para levantar aqueles cem quilos que era o peso de Jorge na época. — Ela está com o santo, doutor — diagnosticou o entendido Aurélio. 

— Isso mesmo — disse Jorge, tentando desvencilhar-se dos braços da moça, sem conseguir. 

— Vá Aurélio, vá depressa buscar o Luiz da Muriçoca — ordenou.” 

Luiz da Muriçoca Aqui um parêntese para explicar quem é Luiz da Muriçoca no contexto das coincidências. Babalorixá do Ilê Axé Ibá Ogun, na Vasco da Gama, Luís Alves de Assis ficou famoso por álbuns musicais com cantigas de candomblé, pela amizade com Jorge e Zélia e, o que interessa aqui, pela participação no filme ‘Tenda dos Milagres’, de Nelson Pereira dos Santos. 

Fazia o papel do também famoso babalorixá Procópio de Ogum, outra figura real que voltarei a mencionar mais à frente. Segue o relato de dona Zélia: 

“Aurélio saiu rápido, em busca do pai-de-santo. Felizmente o candomblé de Luiz da Muriçoca, que mantinha boas relações com o Exu Toco Preto e o Sete Pinotes, ficava bem perto de nossa casa. Pessoa de nossa amizade, poderoso e competente. 

Felizmente, enquanto aguardávamos, Neusa resolveu libertar o vovô de suas garras e, com a agilidade de um gato, subiu ao alto do guarda-roupa. Falando e cantando sem parar, ela descobriu lá em cima um litro de mel pela metade. Despejava no chão. 

Estávamos nessa quando a porta do quarto se abriu e Luiz da Muriçoca adentrou. 

— O que é que há, meus meninos? — disse, dirigindo-se a Neusa. 

— Meus meninos? — estranhou Jorge. 

— Você então não vê que ela está tomada pelos Ibejes? Só crianças como Cosme e Damião pra fazer essas reinações. 

Neusa gritava: — Bulofa, bulofa... 

O pai-de-santo traduziu: ‘Ela está pedindo ovos’. Meleira igual nunca se viu.  Foto: Acervo A Casa do Rio Vermelho A pedido de Luiz, todo mundo se retirou e o deixamos a sós com a moça para tirar-lhe o santo que a possuía, aliás, os santos, como afirmara ele próprio. 

O trabalho não foi demorado. Ao sair do quarto, Luiz da Muriçoca deixava-a dormindo profundamente: — Ela não vai lembrar nada do que aconteceu. 

— Qual a explicação disso? — perguntei curiosa. — Ela é católica, vai sempre à missa, não é de candomblé... 

— Ela não é, mas tem uma parenta que é e fez uma promessa em nome dela a Cosme e Damião. Essa parenta, não sei se é prima ou o que é, prometeu que se Neusa sarasse de uma doença que teve, com o dinheiro de um salário ofereceria um caruru a sete crianças pobres. Ela não deu a comida, botou o dinheiro na poupança... deu nisso... — riu o pai-de-santo.” 

Ibejis ou erê? Fascinado, porém leigo no assunto (tal qual a escritora), também quis pairar para além dessa história tentando tirar dúvidas com quem entende do riscado.  

Para compreender o que ocorreu com Neusa, consultei meu amigo Dadá Jaques, mobá de Xangô do Terreiro Aganju, mestre de capoeira e fotógrafo, que fez um retrato diferente do diagnóstico de Pai Luiz (ou do que dona Zélia interpretou). Para Dadá, tudo indica que, na verdade, não foram Ibejis que ‘assumiram o controle’ de Neusa, mas o erê dela! 

“Na hora da dor, ela, ou alguém do seu conhecimento, soube procurar quem curasse. E fez promessa logo a quem: Ibejis! Mas quem veio cobrar não foram os Ibejis (que são gêmeos), foi o erê”, disse, antes de tomar um exemplo para explicar o auê na casa 33 da Rua Alagoinhas:“Não prometa nada a uma criança que você não possa cumprir, porque se prometer, cara, ela vai te perturbar, ela vai encher o saco enquanto você não der o que prometeu”. Prometi voltar a falar de Procópio de Ogum (no filme, de Oxóssi), personagem interpretado por Luiz da Muriçoca. Mais um do povo real nos livros de Jorge, Pai Procópio foi muito perseguido por um certo delegado Pedro Gordilho – no livro, Pedrito Gordo.  

Símbolo da repressão policial ao candomblé dos anos 20 aos 40, no romance ele leva uma surra Zé Alma Grande, que vira de Ogum, e humilhado em praça pública, pede para deixar o comando da polícia. No filme, mais ou menos a mesma coisa. Assista abaixo.

Na vida real, conta Dadá, a derrocada de Pedrito foi um pouco diferente, e envolve o fato de ele ser vítima da própria descrença nos encantados. Assim como Neusa, que recebeu um erê sem querer (aqui a coincidência), Pedro vira de Xangô, que o domina sem que ele perceba durante uma batida policial num terreiro.

Caiu em arapuca montada por uma mãe de santo, que o desmoralizou na frente dos subordinados e, ato contínuo, o fez deixar a polícia. Mas, meu povo, esse milagre é bom demais pra eu gastar num rodapé. Conto a história numa próxima oportunidade. 

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P.S.: Conversei com pessoas da família Gattai/Amado para saber se tinham alguma pista do paradeiro de Neusa, mas é década demais nesse intervalo e, até agora, nada. Quem souber, dá um grito.