A vida muda num instante

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  • Paulo Sales

Publicado em 13 de dezembro de 2021 às 05:04

- Atualizado há um ano

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Na abertura do livro O Ano do Pensamento Mágico, Joan Didion escreveu: “A vida se transforma rapidamente. A vida muda num instante. Você se senta para jantar, e aquela vida que você conhecia acaba de repente”. Ela se referia à própria vida, que se transformou abruptamente com a morte do marido, John, e a grave doença da filha, Quintana. John morreu na mesa de jantar, vítima de parada cardíaca, enquanto jantavam.

O Ano do Pensamento Mágico é uma obra magnífica, corajosa e reflexiva, escrita sob o signo do luto. Lembrei dela por acaso, enquanto lia uma reportagem que falava do luto vivido por famílias de vítimas da covid-19. São pessoas que tinham pais, mães, avós, filhos, sobrinhos e que em dado momento se viram lançadas numa avalanche de perdas devastadoras. A vida muda num instante, disse Didion. Eu acrescentaria que ela acaba como um soluço.

Com as perdas vieram também as mudanças no padrão de vida. A pessoa que sustentava a casa não existe mais, e muitas vezes filhos mais velhos, alguns entre 12 e 15 anos, passaram a cuidar dos menores. Abdicando dos estudos, pondo em risco o próprio futuro. A covid-19 varreu o mundo, mas no Brasil encontrou o seu habitat. Aqui ela procriou livremente, dizimando tudo.

Muita gente com cartazes nas ruas, muita gente pedindo para passar uma embalagem de frango no mercado, muita gente sem norte, sem expectativas, num país convulsionado. Preços sem controle, empregos inexistentes. O empobrecimento coletivo é uma tragédia humanitária ainda não devidamente mensurada. São os nossos furacões, terremotos, tsunamis, vulcões. Com uma diferença: nossa catástrofe não é só natural.

Tento imaginar o caos que deve ser a mente de quem precisa lidar com a perda e ao mesmo tempo encontrar um meio de sobrevivência. É como nas guerras: cascas de batatas podres na neve, tifo e subnutrição, enquanto os braços fortes da família desabam no front. Mulheres carregando toras de madeira, adolescentes se prostituindo, crianças dando adeus à inocência e à escola.

William Faulkner escreveu em O Som e a Fúria: “Nenhuma batalha sequer é lutada. O campo revela ao homem apenas sua própria loucura e desespero, e a vitória é uma ilusão de filósofos e néscios”. Transpondo a América rural do início do século 20 para o panorama urbano brasileiro deste século já entrando em sua terceira década, eu me pergunto: será que estamos presos em fatalismo semelhante? Resta-nos só a loucura e o desespero?

O niilismo de Faulkner é provavelmente exagerado, mas integra um conjunto narrativo no qual ações e pensamentos reproduzem o pior do homem. Como se fosse impossível escapar a uma sina trágica. Será essa a nossa sina também? Estamos condenados ao malogro eterno ou é apenas um hiato de som e fúria, comandado por um idiota e sem sentido algum? Creio no hiato e torço para que seja breve.

Volto ao Ano do Pensamento Mágico. Na contracapa do livro, uma foto de Joan, John e Quintana na varanda de uma casa em Malibu. O mar está à direita, um copo de uísque na amurada e Joan observa o marido e a filha, que por sua vez olham para a câmera. Estão com semblante descontraído. É a mais perfeita tradução da felicidade: prosaica, tranquila, aconchegante e terrivelmente breve.