A volta da hipnose: é verdade que cura intolerância à lactose?

Leia entrevista com o psicólogo Guilherme Raggi, um dos fundadores do Grupo de Estudos da Hipnose, da USP

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  • Hilza Cordeiro

Publicado em 17 de agosto de 2021 às 16:45

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Acervo pessoal

Apesar de ainda cercada de desinformação e desconfiança, a hipnose é uma prática que já conta com bons estudos científicos e está voltando a cair nas graças do povo. A ciência vem colhendo resultados interessantes sobre esta terapia, mas muitos hipnólogos superestimam a eficácia dela.

Para entender até onde já se sabe e quais são estes limites, conversamos com o psicólogo Guilherme Raggi, um dos fundadores do Grupo de Estudos sobre Hipnose, o Gehip, da USP, criado há sete anos.

A hipnose é um conjunto de técnicas que provocam alterações na percepção e nos sentimentos das pessoas. Como não é uma atividade regulamentada no Brasil, qualquer um pode exercê-la, incluindo quem faz curso de apenas um fim de semana. A prática tem sido retomada nos últimos dez anos e muitos profissionais, inclusive da área da saúde, têm recorrido à ela.“Sempre vai aparecer terapia para problemas que estão em notoriedade e a hipnose voltou a crescer. Essas terapias ganham foco especialmente em momentos de crise, quando as pessoas tentam se especializar para mudar de carreira porque sabem que essas profissões de bem-estar estão em alta”, diz Raggi. Até então, sabe-se que a hipnose contribui sobretudo para controle da ansiedade e da dor clínica. Em 2018, ela foi aceita como terapia alternativa pelo Ministério da Saúde e, hoje, integra o hall de serviços do SUS. Em Salvador, ela não é oferecida na rede pública municipal, mas pode ser encontrada nos sistemas das cidades de São Sebastião das Laranjeiras, Boa Vista do Tupim, João Dourado, Cansanção, Abaíra, Campo Formoso, Ipiaú e São Felipe, segundo dados do ministério.

Leia a entrevista:

CORREIO - Para quais casos a hipnose é uma terapia com resultados comprovados? 

Guilherme Raggi - Os estudos sobre a hipnose mostram ganhos, principalmente, em torno de problemas que envolvem controle de dor clínica, ansiedade e fobias das mais variadas, como medo de falar em público.

As pesquisas sobre dor clínica são muito robustas, é o que a gente tem mais certeza de que funciona, da dor do parto até dores cirúrgicas. Dentistas no Brasil usam a hipnose para lidar com pacientes nos consultórios.

A despeito do que imaginam sobre a hipnose — que é você deitar e ficar sob controle de outra pessoa — ela é, na verdade, um processo muito ativo por parte de quem está recebendo o tratamento.

Por ser uma terapia ativa, as pessoas se sentem mais parte da coisa, mais no controle da própria vida, dos próprios pensamentos e sentimentos, e isso acaba ajudando a lidar, por exemplo, com quadros como depressão, transtornos de impulso [como cleptomania] e distúrbios de alimentação [anorexia e bulimia]. 

Os estudos são vastos ou o tema ainda requer muita pesquisa? 

Sempre falta pesquisa. O campo já é bem rico, mas, infelizmente, há pouca produção no Brasil sobre hipnose, poucas universidades onde tem pessoas que estudam o tema. São, basicamente, a USP, Unifesp, UNB e UFRJ, ou seja, São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro. Fora do Brasil, tem periódicos próprios, uma divisão dentro da Associação Americana de Psicologia só para hipnose e grupos ao redor do mundo que lidam de maneira muito séria.

É verdade que a hipnose trata ou cura intolerância à lactose?

Não temos estudos. Particularmente, acredito que não cura. É uma questão de deficiência de enzimas e acho um exagero, mas é algo interessante, vale ter estudos. Muitos falam nessa coisa do fundo emocional, mas isso é uma caixa preta, é um argumento muito fácil do profissional jogar: “Ó, isso aí é emocional”.

É importante salientar que existe uma coisa parecida para a qual a hipnose tem estudos, que é a síndrome do intestino irritável, que tem sintomas parecidos com a intolerância à lactose, como diarreia, desconforto abdominal, gases. É um transtorno difícil de diagnosticar por conta da similaridade com outros problemas. Vamos contextualizar um pouco para não parecer que é só mágica.

As pesquisas sobre síndrome do intestino irritável sendo tratadas por hipnose começaram com um psicólogo. Ele fazia um aprofundamento do estado de relaxamento, no qual a pessoa pudesse sentir calor agradável das mãos no abdômen. De alguma forma, relaxava a região, fazia bem.

Não são estudos gigantescos, populacionais, como os das vacinas ou medicamentos. São estudos pequenos, mas, no geral, as pessoas têm melhoras do quadro. A pergunta que se torna necessária é: Como é que isso funciona?

Uma das coisas a considerar é que nós, geralmente, não pensamos que órgãos do abdômen também se comportam. Se nos assustamos, há uma descarga de adrenalina, o coração dispara, a respiração se altera. Se sentimos um cheiro desagradavel, podemos ter enjoo.Nossas vísceras respondem às coisas do mundo. Não é impossível dizer que um evento psicológico não pode afetar essas funções. Só que para poder dizer, de maneira confiável, precisamos de certeza científica.Mas por que pessoas se dizem curadas da intolerância à lactose através da hipnose?

Experiência individual não ajuda a determinar a eficácia de uma terapia. Pessoas vão dizer que tiveram sucesso. A questão é como se mede esse sucesso. O cliente da terapia quer melhorar. Nas pesquisas em Psicologia, já sabemos que as pessoas tentam agradar o pesquisador, por isso precisamos de medidas independentes.

A experiência do profissional é interessante, lógico, não descartamos, mas ela está nos níveis mais baixos de evidência científica para que um problema seja considerado tratável por uma certa terapia. Já que qualquer pessoa pode exercer a profissão, como um hipnoterapeuta com pouca formação saberá diferenciar o que é deficiência de enzimas e o que é emocional?

Quando pensamos em um profissional de saúde, pensamos numa pessoa que estudou, no mínimo, cinco anos, fez um conjunto de estudos que permitem tomar decisões e avaliar a literatura científica. Alguns conselhos dessas profissões reconhecem que a hipnose é uma ferramenta que pode ser usada, mas ninguém regulamenta a hipnose no Brasil.

O que se pode dizer é que, provavelmente, um hipnoterapeuta que não tem formação em saúde, será muito mais otimista em relação à hipnose do que alguém com formação em saúde.Muitas vezes na hipnose, as pessoas têm gurus que dão cursos e dizem: “Olha, a hipnose funciona para isso”, mas não embasam. O que a pessoa ouviu se propaga como um meme, permanecem dizendo.Embora o profissional sem formação na saúde possa ser uma capaz de conduzir um ambiente confortável e terapêutico, não será capaz de produzir um grau de terapia com essa especificidade [de diferenciar casos].

A hipnoterapia vem conquistando respeito? São muitos os charlatões?

Ao meu ver, a hipnose não está ganhando respeito, mas sim popularidade. Está aparecendo mais e, por outro lado, cada vez mais, aparecem também cursos questionáveis. O problema é que vamos tendo profissionais fajutos.

E não é uma questão apenas do hipnoterapeuta que é formado num final de semana, há psicólogos ruins, médicos ruins, profissionais ruins em qualquer área. Temos que tomar cuidado com profissionais que estão vivendo mais do marketing sobre a coisa do que sobre a coisa em si. 

Um hipnólogo que fez um curso de um fim de semana, independente de área, está no despreparo para lidar com problemas psicológicos complexos, como reconhecer a diferença de um transtorno depressivo do transtorno bipolar. Ou reconhecer sinais clínicos que te deem aquela pontinha de dúvida para falar: “Olha, talvez fosse bom você procurar um endocrinologista”.

Esse tipo de experiência clínica é importante quando lidamos com a saúde das pessoas. Às vezes, o cliente pode deixar de fazer um tratamento de um problema de saúde grave. Ajuda muito se o hipnoterapeuta tiver uma formação em saúde porque a capacidade diagnóstica é muito importante.

Não quero dizer que hipnoterapeutas charlatões são mal intencionados, tem muita gente que, de fato, acha que está ajudando e talvez esteja ajudando mesmo. A questão é que de boa vontade o inferno está cheio, né?

Quando a pessoa não tem formação e não está respaldada por um código de ética, ela pode fazer o que quiser, não tem nenhum problema que não seja estritamente criminal, faz a propaganda que quer. No máximo, esse pessoal fica mal falado. O maior limite nessa área hoje é entre o técnico e o ético.

Como identificar os charlatões?

É importante considerar que se a pessoa tem certeza demais do método dela, isso já é mau sinal. Sabemos que terapias e medicamentos falham e pessoas que buscam esse tipo de terapia, tipicamente, já cansaram de passar por terapias convencionais e não terem efeito. Elas querem acreditar em alguma coisa, querem melhorar e isso é legítimo, mas se torna muito mais fácil cair na conversa de algum profissional, não só da hipnose.

Sempre digo para alunos de graduação que qualquer prática psicológica que diz ter uma uma eficácia de 100% é só porque o cara tá querendo te vender o curso e encher o bolso de dinheiro. Quando dizem que a hipnose consegue resolver qualquer problema em não sei quantas sessões, eles estão apostando em um público cansado.

O que falta saber sobre hipnose?

Para mim, as decisões que as pessoas tomam são passíveis de serem analisadas como comportamentos: quais tipos de tratamento procuram, como elas procuram, quando elas procuram, quem são as pessoas que mais buscam. São perguntas que nos interessam e são alvo de estudo. Seria incrível saber qual é o público dessa terapia. Quem sabe no futuro?

Temos uma característica humana de perceber sentido em algumas coisas que às vezes não tem. Então, é muito comum nas terapias alternativas encontrar gente que deu, digamos assim, três pulinhos antes de atender uma pessoa, daí a pessoa aparentemente melhora e o cara acha que foram os três pulinhos que melhoraram. Por isso, a gente tem que prezar muito pela ciência brasileira.

Resultados comprovados da hipnose:

Vício em álcool Ansiedade e depressão Controle da dor clínica Transtornos de impulso, como cleptomania Controle de raiva Distúrbios alimentares, como anorexia e bulimia Construção de confiança Aumento da autoestima Síndrome do intestino irritável Transtorno do estresse pós-traumático Medos e fobias Questões sexuais Gagueira Síndrome do pânico Insônia