Acervo histórico: 133 peças do Museu Wanderley Pinho serão restauradas

Objetos pertenceram a antigos senhores de engenho e trazem um retrato da sociedade durante o ciclo do açúcar

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  • Da Redação

Publicado em 5 de abril de 2021 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Divulgação/Ipac

O móvel de vinhático incrustado com madrepérola e a camisola bordada com fios de prata revelam a vida luxuosa das famílias donas do Engenho Freguesia, no distrito de Caboto, em Candeias. Os instrumentos de castigo, como o tronco, também escancaram a crueldade da escravidão. Estas são algumas das cerca de 200 peças do acervo do Museu do Recôncavo Wanderley Pinho, que está passando por reformas e deve reabrir em julho na propriedade. Como parte desse processo de intervenção no local, foi aberta uma licitação para a execução de serviços de restauração de 133 dos bens móveis do espaço.

Depois de restaurados, os objetos vão integrar a exposição de longa duração do museu e oferecer ao visitante uma espécie de viagem no tempo ao adentrar as salas redecoradas com os itens que realmente eram usados pelos moradores do engenho. Ao fazer o panorama da vida no local, a exposição vai trazer um retrato da sociedade da época e demonstrar o poder que era detido pelos senhores de engenho.“As peças foram compradas quando, em 1968, o governo da Bahia adquiriu o Engenho Freguesia. Por isso, sabemos que os objetos pertenciam aos senhores. As peças trazem um contexto histórico capaz de dar a dimensão do funcionamento do engenho e do que era a propriedade, com base no tipo de item que eram usados. Com as imagens dos santos, por exemplo, podemos saber quem era cultuado. Mais do que o valor artístico, o acervo tem importância histórica”, afirma a diretora de museus do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural do Estado da Bahia (Ipac), Fátima dos Santos.O fato de os objetos realmente pertencerem àquele espaço dá autenticidade e veracidade à coleção do museu. Para o historiador e arquiteto Francisco Senna, a possibilidade de recompor o ambiente sem recorrer a elementos externos permite que seja demonstrado de forma mais fiel como era o imóvel no passado e a vida no Recôncavo baiano no ciclo da cana-de-açúcar.

Datados do século XVII ao século XX, os objetos acompanharam a história da Bahia, com o auge e a decadência do ciclo do açúcar. O acervo é composto pela coleção de mobiliário, com móveis de madeiras nobres, como as marquesas e a mesa de jantar com cadeiras; o conjunto de imaginária cristã, com imagens de santos como São Jerônimo e Nossa Senhora da Conceição; a coleção de pintura, onde encontra-se os retratos do Barão de Cotegipe e uma fotopintura da família de Wanderley de Araújo Pinho. Existem, ainda, coleções de têxteis, cerâmica, tecnologia rural e instrumentos de castigo.

Dentre tudo que compõe o acervo, um lenço com o Brasão Imperial e o monograma de Dom Pedro II é a peça que mais chama a atenção da diretora de museus do Ipac.“Uma restauradora me mostrou o lenço que deve ter pertencido a Dom Pedro II. Na época, ela me disse nunca ter visto um item do tipo, nem mesmo no Museu Imperial”, relembra Santos. Lenço com o Brasão Imperial e o monograma de Dom Pedro II é uma das peças do acervo (Foto: Divulgação/Ipac ) 55 cômodos Junto com os objetos, o casarão de quatro andares e 55 cômodos, onde funcionava a Casa-Grande do engenho, ajuda a recontar a história da sociedade da época. O imóvel data da segunda metade do século XVIII, apesar de um pequeno engenho com moagem existir no local desde o século XVI. Uma das marcas daquela sociedade é a hierarquização e a estrutura patriarcal, o que fica evidente com a configuração do imóvel que dividia os espaços de trabalho e lazer.

No andar inferior eram realizadas as atividades de trabalho com um local para os escravos, segundo o historiador Rafael Dantas. A administração de engenho era localizada um patamar acima e os andares nobres ocupavam os dois últimos pisos, com quartos da família e os salões.

As casas eram ocupadas por famílias grandes, o que também é apontado pela mobília. Devido ao número de integrantes do círculo familiar, os moradores do engenho viviam em uma espécie comunidade ao redor de si mesma, explica Senna.“O convívio do dia a dia era uma festa por si só por agregar muitas pessoas. A vida social era mais religiosa e familiar. A cozinha possui muitos fornos para cozinhar para essa comunidade familiar extensa”, comenta o historiador e arquiteto. Ainda de acordo com ele, as senzalas também eram divididas entre os escravos da casa e da lavoura, que recebiam tratamentos diferentes.Apesar dos grandes salões, as famílias de elite só se visitavam em ocasiões especiais, como a festa do padroeiro ou o nascimento de uma criança. Senna relembra ainda que as mulheres iam pouco à rua e os senhores de engenho ficavam trabalhando.

Decadência No passado, o Engenho da Freguesia foi um dos mais importantes do Recôncavo e pertenceu a famílias que moldaram os caminhos da região. “O abandono do prédio reflete a decadência de um passado escravista e açucareiro”, afirma Dantas. A última moagem de cana do engenho ocorreu em 1900.

De acordo com Dantas, em 1624, o local foi atacado e incendiado pelos invasores holandeses. Depois de reerguido, o espaço passou a ser de posse de Antônio da Rocha Pita até ser comprado pelo Conde de Passé, no século XIX. A família Araújo Pinho foi a última proprietária do imóvel, que está sob responsabilidade do Ipac. Em 1944, o sítio foi tombado pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), após um processo iniciado pelo historiador Wanderley de Araújo Pinho, que dá nome ao museu. O espaço está fechado há mais de 20 anos.

O museu ainda pode ser acessado pelo mar, o que amplia ainda mais a experiência histórica já que o transporte marítimo era preponderante na região. Segundo o secretário de Turismo da Bahia, Fausto Franco, as obras do espaço estão 85% completas e uma outra licitação ainda será aberta para realizar uma intervenção na estrada que dá acesso ao local. “Tem uma parte da história da Bahia ali. Com esse museu, conseguimos entender a relação aristocrática e escravocrata na Bahia e na Baía de Todos-os-Santos. Tudo era feito por saveiros porque não existiam estradas”, afirma o secretário.A previsão é que a empresa ganhadora da licitação faça o restauro das peças em seis meses. De acordo com Santos, cerca de 70% das 133 peças que serão restauradas estão em bom estado ou em uma condição regular de preservação. Os itens de tecido e a foto pintura são os objetos que devem dar mais trabalho pela fragilidade e pelo impacto da ação do tempo. 

O restauro das peças é a segunda etapa das intervenções no local que são conduzidas pela Secretaria de Turismo do Estado da Bahia (Setur) e Ipac com recursos do Prodetur Nacional Bahia, através de financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). O museu faz parte do conjunto de obras do Prodetur Nacional Bahia realizadas no entorno da Baía de Todos-os-Santos, que resultará na requalificação do turismo náutico e cultural da maior baía do Brasil.

O projeto de urbanização e revitalização inclui toda a estrutura do antigo Engenho Freguesia, com a casa grande e a capela totalmente restauradas, além de guarita, vias internas de acesso, subestação de energia, estacionamento, paisagismo, fábrica e atracadouro.

Licitação As empresas interessadas em fazer o restauro das peças do Museu do Recôncavo Wanderley Pinho devem participar da concorrência aberta por meio de licitação. Para adquirir o conjunto completo de documentos necessários para participar do certame, basta acessar o site do Prodetur Bahia ou fazer uma solicitação por escrito por meio do endereço de e-mail [email protected].

Os documentos de licitação serão enviados gratuitamente por meio eletrônico. As propostas deverão ser entregues à Comissão Especial de Licitações (CEL) da Setur-BA, localizada na Avenida Tancredo Neves, nº 776, Bloco A, 5º Andar, Caminho das Árvores. 

As propostas serão abertas às 10h do dia 4 de maio, na presença dos representantes dos licitantes que desejem assistir. Caso a pandemia inviabilize a sessão presencial, será disponibilizado e enviado a todos os interessados o link para reunião virtual. Propostas encaminhadas com atraso serão rejeitadas. 

O edital segue os procedimentos de Licitação Pública Nacional (LPN) estabelecidos nas Políticas para a Aquisição de Bens e Contratação de Obras Financiadas pelo BID, edição GN 2349-9. Mais informações estão disponíveis no site do Prodetur Bahia, pelo e-mail [email protected] ou pelos telefones (71) 3116-4164/4158.

*Com orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro