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Da Redação
Publicado em 4 de agosto de 2021 às 14:18
- Atualizado há 2 anos
Um homem de 21 anos foi preso nesta quarta-feira (4) acusado de estuprar uma turista espanhola no distrito de Caraíva, em Porto Seguro. O crime aconteceu na madrugada do dia 25 de julho.>
Segundo a Polícia Civil, o suspeito preso é indígena e foi preso na aldeia Xandó, que fica em Caraíva, por agentes da 23ª Coordenadoria Regional de Polícia do Interior (Coorpin).>
De acordo com relato da vítima, ela pegou uma carona com um motorista de quadriciclo para o estacionamento Xandó. Ao chegar lá, dois homens a atacaram e abusaram sexualmente dela. Esse outro homem, além do motorista, ainda estão foragidos.>
"É uma importante prisão realizada pelos nossos policiais. Conseguimos, com nosso trabalho de inteligência, identificar e prender o autor. Os outros dois que estavam com ele no momento do crime estão sendo procurados”, diz o coordenador da 23ª Coorpin, delegado Moisés Nunes Damasceno. >
O indígena, que teve o mandado de prisão preventiva cumprido, está sendo encaminhado para a sede da Coorpin, em Eunápolis, onde ficará à disposição da Justiça. >
Violência sexual se intensificou nos últimos dois anos Os casos de estupro e assédio sexual começaram a preocupar a comunidade em 2019. O estopim das discussões sobre a insegurança das mulheres foi o estupro de uma moradora, no dia 14 de dezembro daquele ano. A cozinheira Mila Simões, 36 anos, caminhava pela Praia da Ponta do Nego, quando o crime aconteceu.“Era luz do dia, com a praia teoricamente movimentada, eu estava caminhando e ouvindo música. Um ato normal de alguém que mora na praia”, recorda a carioca, que tinha firmado residência em Caraíva no verão de 2017, depois de passar o Réveillon do ano anterior no vilarejo.Na época, “existiram outros casos, que não tiveram repercussão”, alerta Mila. As mulheres ainda temem denunciar a violência sexual - seja por represália da comunidade ou recepção nas delegacias - e esse “outros” fogem das estatísticas. A reportagem mapeou dois deles, além do crime contra a carioca. Mila levou o caso até uma delegacia de Porto Seguro. Até hoje, dois anos depois, ninguém foi preso. Também não houve exame de corpo de delito. “O laboratório só iria abrir vários depois e minha lesões no corpo teriam saído nesse tempo”, diz Mila. "A rotina mudou", diz moradora de Caraíva (Foto: Leitor CORREIO) O crime de estupro não ocorre só quando há penetração. A legislação brasileira considera qualquer ato libidinoso realizado mediante força ou ameaça contra alguém, sob pena de 6 a 10 anos. “O delegado nem usou a tipologia de estupro”, lembra Mila. Se não teve repercussão judicial, em Caraíva, pelo menos, o caso dela mobilizou a comunidade feminina.>
Na mesma semana, mulheres criaram o grupo Caraíva sem Assédio, organizaram reuniões, espalharam faixas contra o assédio pelo vilarejo e distribuíram sprays de pimenta entra elas. “Machismo e abuso sempre aconteceram por aqui. Mas, agora, as pessoas estão falando mais e está ocorrendo mais, por ter lugares mais afastados com pessoas morando. É muita gente sem controle do poder público para estruturar e receber todo mundo”, opina, coletivamente, o Caraíva sem Assédio.Em janeiro de 2020, depois de reuniões e campanhas, no entanto, outro estupro ocorreu no vilarejo. No dia 21, Maria do Carmo Ribeiro, 27, publicou nas redes sociais: “Fui estuprada e não vou me calar”. O crime ocorreu na casa de Maria, nos limites da Aldeia Xandó. A vítima dormia quando teve a casa invadida por um homem.>
O homem, identificado como Tácio Bonfim pela polícia, foi preso à época e é suspeito de cometer abusos contra mais cinco mulheres em Caraíva, segundo o Ministério Público da Bahia. >
Território indígena é colocado sob tensão e lideranças temem preconceito O vilarejo de Caraíva está a 70 quilômetros de Porto Seguro e não tem circulação de carros. São as canoas que guiam os turistas na chegada e na partida ou os moradores que precisam de serviços que a comunidade não oferece. Com a lotação da Vila, Caraíva cresceu em outras direções. Uma delas foi a Aldeia Xandó, com casas em construção e para aluguel temporário, cuja diária custa até R$ 450. Hoje, segundo lideranças do território indígena reconhecido pela Fundação Nacional do Índio (Funai), 70% dos moradores são de fora e apenas 30% nativos. >
Desde 2019, pelo menos cinco casos de violência sexual ocorreram nas proximidades do território indígena, que foi colocado no centro dos debates. A turista espanhola estuprada na última semana voltava de uma festa clandestina na Aldeia quando o crime aconteceu. A partir das quintas-feiras, as festinhas clandestinas tomam conta da Aldeia. “Xandó e o entorno cresceram muito e estamos falando da importância de se combater esses crimes”, diz Sairi dos Anjos Santos, um dos sete líderes que acompanham o cacique. >
A liderança está duplamente preocupada. “Já existe um certo preconceito contra indígenas e temos medo que as coisas sejam distorcidas. O turismo e o dinheiro trouxeram muito indeliquente”. lamenta. A Funai foi questionada sobre os casos de violência sexual contra mulheres no território. O órgão não respondeu até o fechamento da publicação. >
A Aldeia Xandó e Caraíva estão conectadas por terra, a menos de dois minutos de caminhada uma da outra. “Xandó e Caraíva são irmãs gêmeas, uma coisa só. Não adianta querer culpar um lado”, opina Agrício Ribeiro, dono de uma pousada no vilarejo. Na opinião dele, Caraíva, que sempre atraiu turistas e novos moradores pela tranquilidade, foi “picada”.“Picada pela picada do dinheiro e da ganância. Caraíva é um lugar frágil e que cresceu desordenamente. Qualquer crescimento desordenado traz algo de ruim”. Para estabelecer uma relação entre crescimento turístico e urbano desordenado e casos de estupro e assédio é preciso olhar para um passado não tão distante. Entre as décadas de 1960 e 1990, no Brasil, propagandas oficiais de turismo brasileiras utilizavam imagens femininas, fora de contexto, e com apelo sexual, para atrair turistas. Só depois disso, e aos poucos, esse modelo foi deixado de lado. Mas, os problemas permanecem, se não há uma política pública de acompanhamento e gestão. “Ao mesmo tempo em que o turismo ocasiona o crescimento econômico de determinados lugares, na ausência de políticas específicas de gestão e de desenvolvimento social, ele pode favorecer este tipo de prática”, explica Fernanda Caires e Caires, pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas doutoranda em Economia pela Universidade Federal da Bahia. Em 2019, a organização não-governamental Think Olga e o site de turismo booking.com formularam uma cartilha chamada "Mulheres Pelo Mundo, um guia para viajar em sua própria companhia", com conselhos para enfrentar o medo de viajar sozinha, dicas de segurança e estratégias para aproveitar melhor a estadia. Mas, a mudança, acredita Fernanda, precisará perpassar mudanças e ações mais complexas. Não adianta, por exemplo, pensar o turismo isolado dos contextos onde ele ocorre. >
Sem considerar os elementos culturais, a vulnerabilidade, o distanciamento do estado e a falta de políticas numa comunidade, acredita Fernanda, a violência sexual continuará a transformar paraísos em infernos. >