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Da Redação
Publicado em 7 de novembro de 2019 às 16:08
- Atualizado há 2 anos
A advogada Daniela Borges participava de julgamento no STF (Imagem: TV Justiça/Reprodução) Era um julgamento para decidir pela incidência de contribuição previdenciária sobre o salário-maternidade, no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília, na quarta-feira (6). Era um momento em que uma mulher defendia a inconstitucionalidade da medida - que está diretamente ligada aos interesses de outras mulheres.>
A advogada baiana Daniela Borges, professora da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e da Faculdade Baiana de Direito, estava no meio de sua sustentação oral, quando foi interrompida pelo ministro Marco Aurélio Mello. O ministro repreendeu o fato de a advogada ter se referindo à turma de ministros pelo pronome “vocês”. Defendeu que o correto seria tratá-los por “vossas excelências”.>
Daniela tem posição de destaque na representação de outras mulheres – é atual presidente da Comissão Nacional da Mulher Advogada da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) nacional. Ela representava a OAB no processo quando passou pela situação. A entidade participa do caso como amicus curiae ("amigo da corte", em latim) e defende que a cobrança é inconstitucional, além de onerar e gerar desestímulo à contratação de mulheres.“Presidente, novamente, advogado se dirige aos integrantes do Tribunal como ‘vocês’? Há de se observar a liturgia. É uma doutora, professora”, repreendeu Mello. Após ser interpelada, Daniela pediu desculpas antes de seguir com a sustentação. “Peço desculpas a Vossa Excelência. Talvez pelo nervosismo. O senhor, Vossa Excelência, tem toda a razão. Peço desculpas. É o que posso fazer no momento">
Em nota, a advogada agradeceu as manifestações de solidariedade. "Quero dizer que, para mim, o importante é que ao final cumpri minha missão. Não me abati, terminei a sustentação oral com tranquilidade. O próprio Ministro, ao pedir vista, fez menção a um argumento que levantei e que fez com que ele repensasse seu posicionamento. Portanto, penso que o resultado foi positivo e espero que, ao final, seja declarada a inconstitucionalidade da contribuição previdenciária sobre o salário maternidade, matéria de grande importância para as mulheres", disse. O ministro já tinha repreendido um advogado na mesma sessão. No momento, porém, a reprimenda foi mais suave. O advogado Renato Nunes também se referira aos ministros como ‘vocês’. "O pedido de justiça que eu estou fazendo aqui para vocês, excelências, ele nunca foi tão eloquente". >
Foi o que bastou para que o ministro Marco Aurélio interrompesse. "Para vocês?", questionou. O advogado não entendeu e o ministro se referiu ao pronome de tratamento. "Me perdoe. Vossas excelências", respondeu Nunes.>
Nota pública Nesta quinta-feira (7), a OAB-BA divulgou uma nota pública sobre o episódio. No texto, assinado pelo Conselho Seccional e pelo Colégio de Presidentes de Subseções, a entidade destaca que já diversos símbolos que podem ser traduzidos naquela interrupção. Para a OAB-BA, a diferenciação de sujeitos por pronomes de tratamento é uma herança do sistema colonialista brasileiro. “A linguagem, símbolo de poder e opressão, cuida de colocar em diferentes castas aquele que fala daqueles outros aos quais dirige a palavra, servindo de costura ao esquema de docilidade tão bem referido por Foucault, para a projeção das modernas relações de vassalidade, submissão e obediência. Os sutis, mas não menos violentos, arranjos de poder que traduzem as “corretas” formas de tratamento, mais do que sobrepor a forma ao conteúdo, são responsáveis por garantir a incontestabilidade de seus ditadores, ocultando-lhes, com seus títulos, o vazio de seus significados”. A OAB, que manifestou solidariedade à advogada, ainda destacou que a interrupção também significou atravessar a voz de mulheres representadas pela causa que estava sendo posta em julgamento – especificamente mulheres parturientes. “O fato demonstra que foi mais palatável ao ministro do STF uma reprimenda primorosamente rebuscada que o respeito insubmisso, o que é apenas um dos muitos sintomas do profundo adoecimento institucional do Estado”.>
Manterrupting A prática de interromper uma mulher enquanto ela está falando é um fenômeno conhecido pela expressão ‘manterrupting’ – a junção das palavras ‘man’ e ‘interrupting’ (‘homem’ e ‘interrupção’, em inglês). O ato é considerado sexista. >
Uma situação que chamou atenção para o termo foi a participação da ex-candidata à vice-presidente Manuela D’Ávila (PCdoB), no ano passado, durante uma participação no programa Roda Viva, na TV Cultura. Em 90 minutos de programa, ela, que na época era pré-candidata à Presidência da República, foi interrompida 62 duas vezes enquanto respondia às perguntas dos entrevistados. >
Outros presidenciáveis tiveram tratamentos diferentes no programa, na mesma época. Ciro Gomes (PDT) foi interrompido oito vezes; Guilherme Boulos (PSOL) passou por nove interrupções. >