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Da Redação
Publicado em 3 de julho de 2022 às 11:00
- Atualizado há 2 anos
No âmbito da literatura da língua francesa, uma das mais importantes obras publicadas no século XX é "Agaguk" (1958), do canadense Yves Thériault. Infelizmente essa é também uma das maiores falhas editoriais brasileiras. Passados mais de 60 anos desde sua publicação, Agaguk segue sem edição no Brasil, talvez nem mesmo em português, se o hiato permanece tanto em Portugal quanto nos demais países de língua portuguesa.>
Um dos maiores méritos do "Agaguk" reside no fato de que, sob uma camada tênue de relato de aventuras num território inóspito e gelado, constrói-se o retrato de um lugar e seus habitantes, com um acréscimo de ruptura e um sinal de novos tempos. Se no final de "Mar morto", de Jorge Amado, Lívia, ao ocupar o espaço de Guma na embarcação, aponta para a entrada definitiva da mulher no trabalho antes exclusivamente destinado aos homens, o mesmo, por assim dizer, ocorre em Agaguk, quando a esposa do personagem homônimo estabelece novas regras de convivência, que culminam com a reorganização da família e também da caça, a principal atividade do seu povo, os inuítes, antes equivocamente designados "esquimós". Edição em francês de Agaguk (Imagem: Reprodução) Outro aspecto muito interessante do relato é a presença dos autóctones canadenses, os inuítes, como protagonistas. Não mais a supremacia dos europeus brancos em contato com os nativos, a mudá-los e depená-los. Os nativos estão por si mesmos, numa crise interna, em que seus costumes e hábitos começam a sofrer sérios desgastes. Se ainda assim o colonizador comparece, é na posição de vilões, de interventores, ligeiramente ridicularizados.>
A suposta aventura começa com a partida de Agaguk, o inuk filho do chefe da tribo, em busca de um lugar afastado onde ele possa, com a pretendida Iriook, constituir sua própria família. Ele parte porque pretende voltar aos primórdios de seu povo, viver longe e começar do elementar, o estágio primordial, de acasalamento do primeiro homem com a primeira mulher. Nisso está a ruptura. Embora de uma geração nova, Agaguk rejeita o estabelecido em favor de uma tradição perdida que é preciso recomeçar. Daí por diante a narrativa se divide em dois núcleos: a tribo original, que se degrada, e a família de Agaguk, fundação a um só tempo do novo e do velho, este resgatado e aquele a lhe oferecer nova essência. O que virá desse choque é o que sua leitura há de oferecer, caro leitor! Edição em quadrinhos de 2014, em português, pela Del Prado (Imagem: Reprodução) Uma lástima que o romance não esteja publicado em português. O máximo que se encontra é a versão quadrinizada do mesmo, que saiu por aqui pela Del Prado, que, infelizmente, encerrou as suas atividades em fins do ano passado. Mas é o que resta ao leitor brasileiro. O gibi é de origem francesa, pela editora Adonis (2010), escrito por Djian e ilustrado Yvon Roy. É uma belíssima adaptação, em que o entrecho se preserva e a arte, clara e refinada, ilustra perfeitamente o elemento que rege os personagens e a região: o frio terrível.>
Muito além do seu tempo, o romance "Agaguk" ainda pede passagem e leitura. Que algum editor brasileiro se dê conta disso e corrija essa falha!>
*Mayrant Gallo é escritor e professor. Autor de O inédito de Kafka (COSACNAIFY, 2003) e Três Infâncias (Casarão do Verbo, 2011).>