Ainda acho que não sei ser uma mulher

Senta que lá vem...

  • D
  • Da Redação

Publicado em 4 de junho de 2019 às 09:58

- Atualizado há um ano

. Crédito: .

Sempre achei que esse texto seria um textão de Facebook que teria como gancho algum 8 de março que já vivi ou que viverei ao longo da minha vida. No entanto, o escrevo agora em um dia aleatório, quando, enfim, encontrei oportunidade e coragem.

Antes de começar, preciso deixar claro de onde eu falo. Eu sou uma mulher negra, de 30 anos, cis, heterossexual, baiana e que teve/tem uma vida classe média — embora eu não me sinta pertencente a esse estrato social. Mas isso é outra história.

Esse texto é sobre eu não me sentir representada pelo Dia Internacional da Mulher. Sim, o 8M para mim sempre foi um grande nada. Hoje resumo o meu sentimento com a expressão “é uma data branca”. Mas nem sempre soube dar nome a falta de representatividade que sentia no dia, mesmo tendo nascido com uma vagina e estando psicológica e emocionalmente confortável com o corpo no qual vim ao mundo.

Me considero feminista e, obviamente, sempre achei um despropósito essa coisa de flor e chocolate no 8 de março. Mas nunca o suficiente para me posicionar sobre. E eu só entendi o motivo quando li o célebre discurso da ativista pelos direitos das mulheres, negra, abolicionista e ex-escravizada estadunidense Sojourner Truth intitulado “Não sou eu uma mulher?”, proferido em uma convenção de mulheres em Akron, Ohio, em 1851. Em um dos trechos que mais me emociona ela diz:“Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens ou a saltar sobre poças de lama e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma mulher? Olhem para mim! Olhem para meus braços! Eu arei e plantei e juntei a colheita nos celeiros e homem algum poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem — desde que eu tivesse oportunidade para isso — e suportar o açoite também! E não sou uma mulher? Eu pari treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão e quando eu clamei com a minha dor de mãe ninguém, a não ser Jesus, me ouviu! E não sou uma mulher?” Rebatendo com maestria os homens que usavam a suposta fragilidade feminina como justificativa para não conceder o direito de voto às mulheres, escancarando a hipocrisia, o machismo e o racismo desumanizador daqueles [e dos nossos] tempos Sojourner falou para mim e para todas as mulheres negras.

Quando eu tinha 6 anos eu apanhava na escola. De um menino. Do meu tamanho. Sem nunca ter feito nada para ele. Eu nunca disse para ninguém por vergonha. Eu, uma menina, tinha vergonha de estar apanhando de um menino. Aos 7 mudei de escola. Passei a ser agredida por um menino muito maior, repetente, que estudava na minha sala. Meus pais descobriram porque me pressionaram a falar depois que viram as marcas dos chutes na farda. Nunca passou pela minha cabeça que eu iria obter condescendência, compreensão e acolhimento por ser uma menina apanhando de um menino. Só sentia uma vergonha imensa de perceber que, apesar de saber me defender de todos os outros ataques racistas que sofria, desse, em específico, eu não conseguiria dar conta sem ajuda.

Na infância e na adolescência lidei com todo tipo de brincadeira pesada. Dessas que os meninos só fazem entre si e que são orientados a não fazerem com meninas, já que estas são princesas frágeis.

Eu era sempre punida. Mesmo quando estava certa. Era o meu jeito de falar, o volume da minha voz, o modo como eu me posicionava. Tudo era motivo para os adultos, em sua imensa maioria brancos, ao meu redor deslegitimizarem qualquer demanda minha.

Nunca fui menina o suficiente para ser daminha, rainha do milho/primavera, representante das meninas da classe. Era motivo de chacota para o menino que tinha que dançar comigo na quadrilha. Odiava quando tinha quadrilha dos travestidos porque já não me sentia muito menina. Lidei com a rejeição masculina — aquelas que dizem que as mulheres não têm estrutura psicológica para suportar — dia sim e outro também.

Na adolescência, além do preterimento comum que todas as meninas negras sofrem, enquanto as meninas brancas sempre eram consideradas parecidas com mulheres brancas famosas eu era associada a homens. Primeiro eu parecia com Tony Garrido. Depois passei a ser chamada de Obina — um jogador de futebol — por ser, vejam vocês, muito boa jogando handball. Depois de um tempo ganhei apelidos terríveis de cunho sexual.

Desenvolvi um gosto por roupas e acessórios fofos na tentativa de demarcar essa feminilidade não reconhecida. Hábito do qual só consegui me livrar há poucos anos. Sempre tive medo de não ser inteligente, visto que bonita as pessoas já não achavam mesmo. Entrei em um relacionamento abusivo com o primeiro homem que me tratou como eu via os homens tratarem as minhas amigas brancas. Lembro de como, para todas as pessoas, eu era invisível perto delas.

Sempre aprendi a fazer as minhas coisas sozinha e nunca tive e nem esperei gentileza dos homens. Só fui viver qualquer coisa parecida com isso aos 20 anos. Esse lugar de não mulher em que fui colocada me fez, confesso, “lidar melhor” com algumas situações que para muitas mulheres são uma questão. Estar sempre solteira e ir a uma balada só para dançar, por exemplo. Cultivei uma independência mental e emocional que me faz ter a consciência plena de que eu não devo trocar a minha vida inteira pelo pretenso amor de um homem.

No entanto, tenho dificuldades com situações comuns para muitas de nós, em geral. Receber coisas pelas quais eu posso pagar e deixar os homens serem gentis comigo, são apenas duas delas. Não tenho baixa autoestima e gosto de elogios, mas não sei lidar com eles. Sempre me achei bonita, mas tinha a consciência de que as pessoas não e, por isso, me fechei durante muito tempo para relações. Não confio plenamente em ninguém. Muito menos nos homens.

Para mim era e é pouco mobilizador reclamar sobre flores no Dia da Mulher porque poucas vezes as ganhei e quando isso aconteceu eu já nem fazia questão. Sobre a [real] infantilização das mulheres porque não fui infantilizada nem quando era criança. Sobre ter o casamento como destino único ou principal porque sempre tive certeza de que iria ser sozinha durante toda a minha vida. Entendo todas essas pautas e acho sim que as mulheres que sofrem com essas questões devem lutar para mudar isso. Acredito que o 8M é uma data importante. Mas nesse dia eu preciso militar por outras coisas. As pautas tradicionais têm pouco de mim. Ainda acho que não sei ser uma mulher.

Texto originalmente publicado no Medium e replicado com autorização da autora