Alegria até na despedida: Casa Tabajara fecha após 65 anos, mas donos abrem o riso

Acompanhamos último dia de casal na loja mais antiga do comércio da Liberdade

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  • Da Redação

Publicado em 29 de março de 2019 às 07:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Evandro Veiga/CORREIO
Altair e José Bonifácio tocavam a Casa Tabajara há mais de quatro décadas por Foto: Evandro Veiga/CORREIO

Se há um protocolo para despedir-se daquilo que se ama, ele certamente inclui o item tristeza. E se esse adeus se refere a algo que você faz com amor há mais de cinco décadas, não sei nem se é possível medir o tamanho da desolação. Mas a cidade, que hoje completa 470 anos, subverte qualquer determinismo que trave o riso ou impeça algum tipo de celebração, como puderam comprovar seu José Bonifácio Falcão, 72 anos, e dona Altair Escopeta Falcão, 66, casal de comerciantes que comandava a Casa Tabajara, loja de confecção mais antiga do bairro da Liberdade, com 65 anos de fundação, e que fechou as portas há exatamente uma semana.

Nada é ciência exata por aqui. Foi fácil chegar a essa conclusão já ao entrar na loja, na Rua Lima e Silva, na sexta-feira (22): ao invés de me deparar com lamento e choro, me bati foi com risos sossegados - primeiro dos proprietários, depois das funcionárias e, claro, da clientela que curtiu a queima de estoque. 

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Seu José Bonifácio já avisava, diante das perguntas baixo-astral do repórter sobre a despedida: “Não estou triste, não! Não é por causa da crise, nem da violência, que vai fechar. Em 52 anos aqui dentro, a loja nunca foi assaltada. E nunca tivemos segurança! É porque a gente quer mesmo”, comentou, com o riso agarrado ao rosto. 

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Dona Altair, outra escopeta de gargalhada e simpatia, também estava estranhamente bem e destacou com orgulho a longevidade da loja e do casal ali dentro. "Ele já está aqui há 52 anos. Estou há 44. Eu morava aqui em frente e ficava olhando ele, de lá pra cá. Ele não queria nada, e eu insistindo, até que deu certo", relembrou o flerte bem-sucedido para a alegria geral das filhas Shirlei e Sheila, que nasceram dessa união e ainda deram crias: um neto de uma e uma neta de outra. O casal Altair e José Bonifácio não perdeu a alegria nem no último dia da Casa Tabajara (Foto: CORREIO) Ao lembrar de outros tempos, a vovó Altair relembrou um ligeiro contratempo. “A loja era enorme. Dividiu e ficamos aqui", explicou, citando a farmácia que funciona ao lado nos últimos anos. Mas, em matéria de felicidade e amor, dividir é multiplicar. Com as filhas, os netos, a cidade virou sinônimo de felicidade...“Somos felizes em Salvador porque foi onde construímos nossa família”, observou a comerciante, que veio de Maracás, no Sudoeste do estado, aos 3 anos de idade.Criada e adotada por Salvador, assim como seu José Bonifácio, natural da cidade pernambucana de Santa Maria do Cambucá - divisa com a Paraíba, região onde habitavam os índios Tabajara. Ele se mudou ainda na adolescência para a capital baiana, a fim de estudar - fez isso ali do lado da loja, no colégio Duque de Caxias - e trabalhar. “O nome (Tabajara) tem a ver com a origem dos primeiros donos: os paraibanos eram parentes do sogro do meu irmão”, destacou ele, citando o primeiro da família a assumir a loja, seu bróder José Ferreira Falcão, 86, hoje aposentado. 

“A loja foi fundada em 30 de junho de 1954. Faria 65 anos agora, mas não esperei, porque eu queria descansar. Cheguei aqui em 11 de janeiro de 1967. Na época era uma loja de tecidos e confecções, porque naquela época não se vendia muito roupa pronta”, relembra, com detalhes, o quase aposentado que pretende abrir uma loja menor, em Riachão do Jacuípe, Centro Norte baiano, onde tomará fôlego para retornar à capital.“Tô saindo daqui, mas não tô arrependido. Futuramente, talvez no fim do ano, tô pensando em botar uma loja ali na frente, que a gente é dono... Não posso é parar. Se parar, adoeço”, comenta ele, que chegou a ser gerente e sócio da loja, antes de virar dono em 1982.Clientes e funcionários Hoje, mais de três décadas depois, muita coisa não é mais como antes. “O ramo mudou. A gente mudou. Antes tinha roupa feminina e até roupa íntima pra mulher. Hoje é só roupa masculina”, observa seu José Bonifácio, que aceitou a proposta de uma marca de bijuterias para assumir o ponto.

O brilho do local, que parecia eterno, ficará na lembrança dos clientes mais antigos. Na mente de dona Maria das Graças de Lima, 61, que parecia incrédula na sua última compra na loja."A roupa do casamento de meu filho, e quando um sobrinho meu casou, eu comprei tudo aqui. Por que vai abandonar a gente? Vocês não vão voltar?", questionou."Não tem mais a cueca de meu filho. Eu não sabia que ia fechar...", complementou, com graça, a copeira das Obras Sociais Irmã Dulce (Osid), que frequenta o local há 30 anos.

Reforçou que a turma é boa praça, e que vai deixar saudade. "Outro dia meu cartão não passou e ele (José Bonifácio) falou: 'pode levar sua mercadoria'... Confiou", destacou.

As duas últimas funcionárias - a loja já chegou a ter nove empregados - também reforçam o elogio. "Queria dizer apenas que eles são patrões muito bons, gente fina. Tamos com saudades já, mas é o melhor pra eles”, observou Eliete Lima Bispo, 38, funcionária desde agosto.

Maildes Pereira, 38, há quatro anos vendedora da loja, também destacou o prazer que foi trabalhar ali. "Aqui foi uma escola. Aprendi muito. Mas é um ciclo que se fecha e outro que se abre, né?”. Diz que é.

Sem estardalhaço A discrição é quase uma filosofia da Casa Tabajara.“Meu irmão costumava dizer (sobre a loja): ‘O povo sabe: a Tabajara sabe vender barato sem fazer barulho’”, recordou seu José Bonifácio.A primeira vez que esse protocolo foi quebrado foi, justamente, naquele último dia. O casal resolveu contratar um carro de som - um dos que anunciam as ofertas em lojas da região - para avisar que a casa estava fechando as portas. Além do alerta (também sobre a queima de estoque), um agradecimento à vizinhança pela longa, pacífica e alegre convivência.