Alfabeto nordestino

Liane Castro de Araujo é professora da Ufba

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  • Da Redação

Publicado em 9 de março de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

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O hino ao nosso alfabeto, dos pernambucanos Luiz Gonzaga e Zé Dantas, entoa “lá no meu sertão, pros caboclo lê, têm que aprender, outro abecê”. Acontece que gerações de soteropolitanos e outros baianos da zona da mata também aprenderam esse abecedário na escola, e com professores letrados, o que indica que ensinar fê, guê, ji, lê, mê, nê, rê, si, não era obra de professores leigos do sertão nordestino. Parece que, agora, “colonizado” pelo abecedário dito oficial, esse modo de nomear as letras só se ouve na Bahia. Sim, ainda se ouve e se ensina, em algumas escolas, do interior e da capital. Isso é o que uma pesquisa, desenvolvida na Universidade Federal da Bahia, tem revelado.

Mas é fato que, tido como mais correto linguisticamente, o abecedário dito oficial e culto vem substituindo esse modo peculiar de nomear as letras, que está desaparecendo sem que conheçamos, de fato, sua legitimidade. Tomado como variedade cultural e linguística do Nordeste, tanto atrai preconceito – por parte de não nordestinos, mas também por eles mesmos – quanto certa admiração quase condescendente. Mas nosso “abecedário nordestino” é mais do que uma variedade linguística não culta. Ele é legítimo, precede o outro e é tão bom – ou melhor – para alfabetizar. Tanto a história do alfabeto quanto da alfabetização o validam, além do próprio Novo Acordo Ortográfico indicar a possibilidade de outros nomes para as letras.

Nomear as letras considerando o som que elas representam foi o princípio que gerou o próprio alfabeto, com os fenícios. Ao emprestá-lo, os gregos seguiram esse princípio acrofônico, em que os nomes das letras davam pistas dos sons que elas representam: alfa, beta, gama, delta... Quando se apropriaram do alfabeto grego, os romanos perceberam que as letras não precisavam de nomes próprios, bastava nomeá-las com referência a esses sons: a, bê, dê, e, fê... Pois foi desse modo que as letras foram nomeadas inicialmente, seguindo um princípio acrofônico mais direto, com os sons que elas representam no início desses nomes. Foi o gramático Varrão (116 e 27 a. C.) que instituiu, de um modo um tanto arbitrário, outra regra, dando origem aos nomes tais quais conhecemos hoje.

Na história da alfabetização no Brasil, por sua vez, circularam manuais e gramáticas portuguesas que indicavam nomear e ensinar as letras mais próximas de seus sons, facilitando a soletração: em vez de eme-a-ma, ele-a-la, para “mala”, mê-a-ma, lê-a-la. E isso veio da França! Ou seja, não foi nenhuma invenção de nordestinos iletrados, como dizem por aí. Além disso, estudos contemporâneos sobre o papel do nome das letras no ensino inicial da escrita alfabética mostram que esses nomes mais próximos de seus sons facilitam a alfabetização inicial, justamente porque dão pistas mais diretas dos fones que representam. Como diz o poeta popular Noédson Valois, “se você prefere, erre! Com o rê não errarei!”.

Precisamos reconhecer o valor cultural e linguístico do nosso abecê, desconstruindo preconceitos e contribuindo para que todos os brasileiros saibam que, no Brasil, há dois modos de pronunciar o abecê.

Liane Castro de Araujo é  professora da Faculdade de Educação da Ufba

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