Aluno denuncia fraude em cotas de Medicina e é processado por pró-reitor

Mulher de professor está entre 15 estudantes investigados

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  • Thais Borges

Publicado em 24 de junho de 2018 às 06:30

- Atualizado há um ano

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A suspeita veio logo que saiu a lista de aprovados para o curso de Medicina. Na época, dezembro do ano passado, o estudante de Direito Moises Sant’Ana, 27 anos, estranhou o perfil de parte dos chamados para cursar a primeira turma dessa graduação na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), que tem campi em Porto Seguro, Teixeira de Freitas e Itabuna.

Na instituição, os cursos são divididos entre primeiro e segundo ciclos – Bacharelados (BIs) e Licenciaturas Interdisciplinares (LIs) seriam do primeiro, e cursos tradicionais, chamados lá de ‘profissionalizantes’ (como Medicina, Direito e Engenharias), do segundo ciclo. Para chegar aos profissionalizantes, obrigatoriamente, os estudantes precisariam ter passado pelo primeiro ciclo.

E foi nessa transição de um ciclo para o outro que Moises percebeu algo estranho: ele suspeitou que tinha gente que não deveria estar ali. Ao ver os nomes, acreditou que gente que não é negra estaria ocupando espaço reservado aos alunos que são. Era o início de uma denúncia de fraude nas cotas que chegou a envolver até o alto escalão administrativo da universidade e um processo por danos morais em R$ 10 mil.

“Notei, pelo nome, que tinha pessoas que não se encaixavam nem em cotas sociais, nem raciais. Durante a discussão sobre a radicalização do sistema de cotas, a maioria dessas pessoas se colocou contrária à política”, diz Moises, que, antes de estudar Direito na UFSB, se formou na licenciatura em Linguagens, Códigos e Suas Tecnologias na mesma instituição e é professor da rede estadual de educação.

Membro da comissão de políticas afirmativas da UFSB, ele participou dos debates e do processo de implementação das cotas para os cursos do segundo ciclo. Em setembro do ano passado, a UFSB aprovou uma resolução que faria com que se tornasse a instituição com o maior percentual de estudantes cotistas do estado. De acordo com uma decisão do Conselho Superior Universitário (Consuni), a partir do ano letivo de 2018, a universidade passaria a reservar 75% de suas vagas para cotistas.

“Porém, a universidade aprovou essa porcentagem, mas aplicou apenas 62% na entrada. Segundo eles, a gente deveria ter pensado nisso na primeira entrada, no Sisu, e não no segundo ciclo, e que eles iam fazer as cotas pelo perfil de egressos. Mas, quando saiu a lista dos aprovados de Medicina, não tinha nem 62% de alunos cotistas”.

Ao final, em janeiro, ele conseguiu detectar 15 pessoas que teriam entrado pelas cotas para negros mas que não teriam perfil para a reserva de vagas. A fraude estaria em duas categorias: candidatos negros e indígenas com renda per capita menor que 1,5 salário mínimo e candidatos negros e indígenas independente da renda. No Brasil, a lei de cotas leva em conta o mesmo critério que o IBGE para considerar que alguém é negro – se a pessoa se autodeclarou preta ou parda.

A UFSB informou, por nota, que instaurou uma comissão de sindicância (veja resposta no final do texto). Postagem feita por estudante em grupo fechado da UFSB traz fotos e nomes de alunos cotistas do curso de Medicina (Foto: Reprodução/Facebook) Nas redes sociais“Fiz um mosaico com a foto do perfil de Facebook de cada um deles, a foto pública, e postei na em um grupo fechado da UFSB no Facebook.  Pedi que a comunidade acadêmica analisasse o perfil daqueles alunos porque eu, como negro, não os reconhecia no meu grupo étnico e nem de realidade social”, lembra Moises, referindo-se à postagem do dia 10 de janeiro feita em um grupo com pouco mais de três mil usuários.Na ocasião, dezenas de estudantes comentaram a publicação. "Que absurdo! É nítido que são afroconvenientes. Muito triste isso", escreveu uma jovem. “Qual é a sua cor? Qual é a sua raça? E a cor do sangue... (sic). O jeitinho brasileiro define", publicou outro.

A partir daí, segundo Moises, a Ouvidoria da UFSB teria recebido 116 denúncias sobre o caso – a instituição confirmou que recebeu a denúncia, mas não informou quantos estudantes teriam apresentado a queixa. Além disso, denúncias foram apresentadas ao Ministério Público Federal (MPF) e à Secretaria da Promoção da Igualdade Racial do Estado (Sepromi). “São pessoas que nunca se entenderam negras, mas se autodeclararam negras”, justifica o estudante.

Entre os 15 alunos do curso de Medicina que foram alvos da denúncia está a estudante Andreia Fernandes. A situação dela poderia ser como de qualquer um dos outros, mas ganhou destaque entre as postagens porque Andreia é casada com o pró-reitor de Tecnologia da Informação e Comunicação da UFSB, o professor Kennedy Fernandes.

Durante o processo seletivo, Andreia se declarou parda – como o critério para ter acesso à reserva de vagas é a autodeclaração, isso a qualificou para entrar no curso através das cotas. Após a publicação no grupo, o pró-reitor e a esposa decidiram mover um processo contra Moises por danos morais no valor de R$ 10 mil.

No processo, ao qual o CORREIO teve acesso, os advogados do casal afirmam que a estudante se considera de cor parda e “é de origem humilde e sempre estudou em estabelecimentos públicos. Assim, concorreu, licitamente, em ambas as cotas, vindo a ser selecionada, desde a primeira etapa do curso, nas vagas reservadas”, afirmam os advogados.

Os defensores ainda dizem que a menção de que a estudante teria fraudado o sistema de cotas e se aproveitado do fato de ser esposa do pró-reitor seria “falaciosa, mentirosa, causou constrangimento sem medida aos Requerentes, que são pessoas de índole e reputação ilibadas, que sempre pautaram sua conduta na ética e moral”, escrevem, requerendo, através de liminar, que Moises exclua imediatamente a postagem veiculada no Facebook.

Exposição pessoal Mas, ao contrário do que diz o estudante, o pró-reitor reforça que o processo não tem a ver com a suspeita das cotas. Ao CORREIO, o professor Kennedy, explicou que decidiu mover a ação pela exposição e pelas ofensas que sua família recebeu. Ele disse que, ao ver a postagem, pensou que a universidade, ao instaurar uma comissão, identificaria algum problema se alguém tivesse feito algo de errado.“Paralelamente a isso, as postagens foram aumentando exponencialmente e sendo compartilhadas. Os comentários foram de ofensas de baixo calão, que o pró-reitor teria fraudado um processo seletivo de uma universidade pública. Para fechar com chave de ouro, postaram foto da minha filha de 11 anos. Colocaram (na legenda) ‘a família com alma de negro”, diz o pró-reitor, que está na UFSB desde a sua fundação. Antes disso, ele tinha sido professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba).Para ele, se não tivesse tomado nenhuma atitude, seria como se tivesse assumindo uma culpa que não lhe pertence. Ao CORREIO, Kennedy explicou que a autodeclaração de sua esposa foi de 2014, quando ela entrou na universidade – ainda no bacharelado interdisciplinar. 

“Estamos falando de uma coisa que aconteceu quatro anos atrás. Ela passou quatro anos estudando. A nota dela a colocaria entre os 10 primeiros colocados. Ou seja, poderia entrar na ampla concorrência se quisesse, mas ela sempre se declarou parda”, afirma. Andreia, de acordo com Kennedy, é filha de mãe negra e pai branco – e, durante toda sua vida, se declarou parda por se ver assim.

Ela chegou a ser aluna da Ufba e também da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Segundo o pró-reitor, nos dois momentos, também se declarou parda e é oriunda de escola pública. Andreia está na categoria de cotas que é independente da renda.

“Inclusive, a minha esposa se formou (no primeiro ciclo). Ela não mudou a documentação, não foi entregue nenhum documento. É o que ela fez lá em 2014. Agora, os alunos querem pegar quem entrou lá em 2014 e fazer passar por um processo de banca de heteroidentificação retroativa e, quem não passar, perderia o diploma. Existe o normal, existe o absurdo e existe isso aí”, critica.

Ele diz que, há seis meses, sua família tem sido vítima do que chamou de apedrejamento em praça pública. Pesquisador da área de tecnologia, contou que chegou a calcular mais de 10 mil menções ofensivas à família, entre publicações, comentários e compartilhamentos. O pró-reitor também destaca que a história surgiu depois que ele assumiu a pró-reitoria, em janeiro. Segundo ele, a maioria dos docentes que critica o processo fazia parte da chapa que perdeu as eleições para a reitoria, no fim do ano passado.“É um massacre o tempo todo. Vários alunos colocaram que o pró-reitor persegue aluno preto pobre, mas eu nem o conheço. Vi hoje (na quinta-feira) pela primeira vez, na audiência. A partir disso, vários movimentos sociais publicaram nota de repúdio a mim, mas ele poderia ser loiro de olho azul que, se falasse algo em relação a mim ou à minha família, seria a mesma coisa. Estão confundindo o que eu sou no meu papel de pró-reitor e o que eu sou no meu papel pessoal”, pontua.Denúncia A primeira audiência do processo foi realizada na última quinta-feira, em Teixeira de Freitas, mas não houve conciliação. Segundo o estudante Moises Sant’Ana, a Sepromi tem acompanhado o caso e até designou um advogado para defendê-lo. Procurada pelo CORREIO, contudo, a Sepromi não emitiu posicionamento até a publicação da reportagem.“Todo mundo sabe que as redes sociais potencializam a nossa denúncia. Eu tomei a iniciativa de fazer a denúncia numa rede social e particularmente digo que meu erro foi agir por emoção, porque fiquei muito chateado. Foi uma luta construída porque muitos colegas meus que são cotistas de fato e pessoas que estão em situação de vulnerabilidade ficaram de fora do curso de Medicina por isso. Tenho colegas que entregam pizza para sobreviver e tiveram o sonho frustrado”, afirma Moises.Várias entidades e coletivos se posicionaram contra o processo movido pelo pró-reitor, como o Diretório Central dos Estudantes (DCE) da UFSB, além do Diretório Acadêmico Tereza de Benguela e do coletivo Negrex e o Movimento Negro Unificado. Na nota do DCE, por exemplo, os estudantes manifestam solidariedade ao colega e repudiam o que chamam de ‘perseguições e violências veladas’ a Moises.

Uma moção de apoio ao estudante foi assinada por mais de 500 pessoas, entre alunos, professores e servidores técnico-administrativos. O texto, escrito pela professora Maria Aparecida Lopes, destaca que o aluno não pode responder sozinho “por uma questão que é de responsabilidade institucional e coletiva, qual seja; a luta antirracista”.

A moção destaca que a elite brasileira, ainda que mestiça, nega esse lugar e se posiciona contra as políticas públicas no país. O texto afirma também que os pardos (mestiços) com direito às cotas são aqueles que vivenciam a condição da pobreza.  Ao CORREIO, a professora Maria Aparecida, que é coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-raciais e foi integrante da comissão de políticas afirmativas da UFSB, explicou que quem assinou a moção não acredita que seja um conflito particular, uma vez que o aluno denunciou um coletivo.

“Não é a guerra de um menino negro contra uma mulher branca”, reforça. Ela conta que, como a universidade foi criada em 2014, essa é a primeira vez que há denúncias de fraude nas cotas. Ela diz que tem duas sensações, ao conhecer as suspeitas de fraude. A primeira é de que nada seria novidade.

Para ela, ‘está tudo no lugar’, uma vez que, historicamente, a universidade sempre foi um espaço da elite brasileira – que, por sua vez, é branca.“A fraude nas cotas representa uma defesa por esse status quo. São os alunos que sempre ocuparam esses espaços defendendo esse espaço”, pontua, enquanto defende educação pela consciência racial e para a autodeclaração correta.Rebuliço As denúncias causaram um rebuliço tão grande na universidade que coletivos como Fala Gente Preta, criado no ano passado por discentes para discutir a permanência dos alunos negros na universidade, acabaram participando na pauta também. “Inicialmente, o coletivo não tinha por objetivo trazer denúncias ou acusar pessoas”, afirma o estudante do mestrado em Ensino e Relações Étnico-Raciais Kauan Almeida, 25.

Para Kauan, a forma como isso vem sendo tratado pela UFSB é contrária à proposta da própria instituição – que veio com a ideia de ser inclusiva e trazer os movimentos sociais. Só para dar uma ideia, a UFSB tem, como forma de entrada para os cursos de primeiro ciclo, tanto o Sistema de Seleção Unificada (Sisu) quanto um sistema único, que é através dos colégios universitários. Nessa rede, composta por unidades de ensino da UFSB que funcionam dentro de escolas estaduais da região, a reserva de vagas chega a 80%.

“A gente percebe como isso é falho, como muitas vezes as pessoas da região não conseguem acessar cursos historicamente elitizados e pessoas de fora conseguem, principalmente de Minas Gerais e do Espírito Santo. Os da região acessam as licenciaturas interdisciplinares através dos colégios universitários, enquanto os de outros estados e até de outras regiões da Bahia conseguem concorrer aos cursos de Medicina e Direito”.

Processo instaurado Através da assessoria, a UFSB informou que todas as denúncias recebidas foram apuradas ou estão em processo de apuração. No dia 7 de fevereiro, a instituição instaurou uma Comissão de Sindicância que teria um prazo de 30 dias para finalizar o processo.

No dia 6 de março, contudo, um novo presidente para a comissão foi nomeado – o anterior, que não teve o nome divulgado, pediu afastamento do trabalho. No dia 5 de abril, a comissão solicitou novo prazo para a conclusão dos trabalhos. O relatório da comissão foi finalmente protocolado no dia 7 de maio e, no dia 10 do mesmo mês, a reitoria encaminhou o documento à Procuradoria Federal junto à Universidade, que respondeu no dia 29 de maio, que deu indicações de providências.

Já no dia 1º deste mês, a reitoria nomeou um relator para avaliar o processo e convocou Reunião Extraordinária do Consuni para o último dia 6. Nessa reunião, “o relator fez a leitura do parecer, a Comissão de Sindicância apresentou o conteúdo do relatório, que permanece em total sigilo, estando restrito ao conhecimento apenas dos membros da Comissão designada para apuração dos fatos”.

O Consuni determinou que a Comissão de Políticas Afirmativas (CPAf) sugerisse nomes para constituição de uma nova comissão, para dar prosseguimento aos trabalhos iniciados pela Comissão de Sindicância.

A última reunião do CPAf foi no dia 15 de junho de 2018, para indicação de cinco membros para acompanhar o Processo Administrativo em tramitação e discussão da Minuta da Resolução que institui o Comitê de Heteroidentificação e Acompanhamento da Política de Cotas. “A UFSB reitera que todas as denúncias protocoladas sobre qualquer matéria serão devidamente apuradas, seguindo o fluxo normal dos trâmites, conforme a Legislação em vigor”, dizem, em nota.

A instituição não respondeu quantos alunos estão sob suspeita, nem confirmou os nomes. Também não informaram o que pode acontecer com os alunos, caso seja comprovada fraude.

A UFSB se mantém em silêncio sobre o processo movido pelo pró-reitor e sua esposa contra o estudante Moises Sant’Ana. De acordo com Moises, a instituição trata a ação movida contra ele pelo pró-reitor como um processo de briga pessoal. “Estão dizendo: resolvam-se. Teve um grupo de professores que pediu para ele retirar, soube que a pró-reitora conversou com ele, mas ele não deu ouvidos. Disse que eu ia responder, sim, e disse que expus a filha dele, que é criança”.

O Ministério Público Federal (MPF) também foi procurado, mas não respondeu até o fechamento da reportagem.