Amor nenhum se dissipa

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  • Kátia Borges

Publicado em 17 de abril de 2021 às 07:00

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Para Mariana, Léa, Paula, Clarissa    Não se iludam, minhas amigas, saudade nenhuma se dissipa. Em um processo quase orgânico, a lembrança de quem amamos se integra ao que nós somos. No íntimo, semente alheia que se planta em nosso solo. Floresce, entristece, sombreia, nada derruba. Dito assim, parece pouco compreensível. Clichê, talvez. Peço desculpas. Não há um tutorial que ensine como viver o luto. Às vezes, leva uma vida.     Podemos sempre recorrer à poesia, nosso bunker. A arte de perder não é nenhum mistério, como no poema de Bishop. O  difícil é a vida e seu ofício, como no poema de Maiakovski. Entre versinhos de memória, e afazeres que nos cobram urgência e constância, vamos nos reconstruindo, ponto a ponto, densa manta. Há amigos e amores a serem aquecidos, noites quentes, paisagens, manhãs que se esparramam em azul.     Há prazos e metas e boletos e entregas. Há filhos, filhotes, folhetos, folhas em branco a serem preenchidas. Com essas coisas, nos ocupamos, distraindo as mãos. Intangível como todo sentimento, a saudade se esgueira por dentro das pequenas alegrias do cotidiano e, num susto, reaparece quando menos se espera. É que, na verdade, esteve ali o tempo todo. A saudade é árvore plantada em nosso solo, com suas folhas e frutos.     A ciranda da rosa vermelha que toca no apartamento do vizinho num domingo, um cheiro bom de comida da infância que salta de varanda em varanda até nos alcançar em cheio, a miniatura em ouro de um crucifixo dentro de um papelzinho verde que traz o Salmo 91.   “Aquele que habita no esconderijo do altíssimo, à sombra do Onipotente descansará”. Cada um tem recantos onde pousam as aves da memória.    Sosseguem, minhas amigas, elas nunca se demoram muito. Logo alçam voo e ganham distância, para que tudo retome seu curso. O temporal da memória desce por frágeis canaletas que diluem a força de suas águas, apaziguando as enxurradas. Agradeçamos, então, a esta queda lenta por amenizar o aguaceiro que, se despencasse inteiro sobre nossas cabeças, certamente nos arrastaria aos subterrâneos.     E há o pensamento mágico como no título do livro, ano após ano. Todos os dias o amor se espalha por tanto tempo que quase se torna tangível. Se fixarmos os olhos em um só ponto podemos até ver seus contornos. O rosto doce da minha mãe, o rosto doce da sua. E então tocamos o amor no ar, apertamos o amor entre os braços, dançamos com o amor a ciranda. Porque sim, minhas amigas, amor nenhum se dissipa.

*Kátia Borges é escritora e jornalista